Um dedicado funcionário
Por Nelson Menda
Meu pai chegou ao Brasil, proveniente da Turquia, com 16 anos de idade, juntamente com meus avós David e Mari Menda e mais cinco irmãos menores. O fato de ser fluente em ladino, o idioma judeu-espanhol que os sefaradis do Império Otomano utilizavam para se comunicar entre si, ajudou-o a dominar rapidamente o português e poder ingressar na Faculdade de Ciências Contábeis de Porto Alegre.
A escrituração dos livros de contabilidade, nos anos vinte do século passado, era toda manual e seu esforço em conhecer a legislação local, aliado a uma caligrafia impecável, ajudou-o a se firmar, após a conclusão do curso, como um dos mais requisitados “guarda-livros” da capital gaúcha. Trabalhou como empregado durante algum tempo, até decidir montar seu próprio escritório, que passou a funcionar na parte da frente da nossa casa, na Cidade Baixa, onde já residia a maior parte dos sefaradis de Porto Alegre. Nesse particular, ele pode ser considerado um dos pioneiros do home-office, pois mesmo quando nos mudamos para um outro bairro fez questão de manter seu escritório em um anexo da nova casa.
A maioria dos esquenazis, por outro lado, tinha optado pelo Bom-Fim, tanto para residir quanto montar suas indústrias e estabelecimentos comerciais. É importante salientar que o Rio Grande do Sul possuía a terceira comunidade judaica do Brasil, logo após do Rio e São Paulo.
A clientela do meu pai, bastante exigente, não fazia questão que o contador fosse judeu ou cristão, sefaradi ou esquenazi, simplesmente queria que o serviço fosse realizado com competência e presteza – e nisso ele foi um craque.
Seu escritório, para mim, sempre funcionou como um prolongamento natural da nossa casa, com destaque para dois fantásticos recursos: as máquinas de escrever e calcular, supra sumo da modernidade tecnológica da época. Ainda bem jovem comecei a auxiliá-lo nas tarefas mais simples, como colar selos nas duplicatas ou providenciar cópias das faturas. Antes mesmo de ingressar no Primário do Grupo Escolar Paula Soares já sabia escrever, não à mão, mas à máquina, graças à Underwood e Olivetti do seu escritório. Esse fato talvez explique meus garanchos, que só foram piorando com o passar da idade, a ponto de, hoje em dia, eu próprio não reconhecer, em determinadas ocasiões, minha própria caligrafia.
Desde que me entendo por gente minha família sempre possuiu carro e telefone, não por luxo, mas porque eram recursos indispensáveis ao dia a dia da casa e do trabalho. Além dos dedicados e fiéis funcionários que o auxiliavam nas tarefas da escrituração contábil, meu pai passou a contar com os serviços especializados de um ajudante bastante especial, tanto no expediente interno habitual do escritório quanto nas visitas periódicas que fazia à sua clientela, espalhada pelos quatro cantos da cidade. Estou me referindo ao Joly, nosso cachorro, que passou a se dedicar, em tempo integral, a acompanhá-lo e apoiá-lo em casa e no trabalho.
Calma, gente, já vou explicar. Meu pai, no escritório, utilizava uma ampla escrivaninha, com espaço nos pés para acomodar o cachorro e permitir que ele pudesse visualizar e farejar, com uma certa antecedência, os visitantes que chegassem, especialmente certas pessoas com as quais não simpatizasse. Que, a bem da verdade, não eram muitas mas, por coincidência, as mesmíssimas com as quais ninguém mais simpatizava na nossa casa. Ou, ainda, que utilizassem, inadvertidamente, sapatos pretos de verniz, como já abordamos em um Blog anterior.
Além dessa autoimposta tarefa o Joly, que também detestava moscas, acabou se especializando em exterminá-las, com golpes rápidos e certeiros desferidos por suas patas dianteiras. Como eficiente funcionário de um escritório contábil, ao fim do expediente, a cada dia, era possível observar a existência de um montículo de moscas mortas acumuladas à sua frente, para ser recolhido pela funcionária encarregada da limpeza. A bem da verdade, ele nunca comeu nenhuma mosca, viva ou morta, pois fazia questão absoluta de manter certos hábitos de higiene alimentar. O Joly ingeria a mesma comida da gente e nunca apresentou, ao contrário de grande parte dos cães de hoje, alergias ou intolerâncias a determinados alimentos.
Uma outra atividade levada bastante a sério pelo bicho era acompanhar meu pai nas visitas profissionais aos clientes em suas respectivas empresas que ocorriam, em geral, a cada duas semanas. Nesses dias, não me perguntem como, o bicho já sabia que não deveria se dirigir, pela manhã, ao escritório, mas sim à garagem da nossa casa, onde o Citroen preto utilizado nas visitas profissionais e, obviamente, nos passeios e viagens da família, pernoitava. Com o Joly a bordo não era preciso trancar as portas do veículo, pois com o cachorro refastelado no banco da frente e latindo para quem ousasse se aproximar, não haveria a menor necessidade dessa providência. Até que, certo dia, aconteceu um lamentável incidente que poderia ter tido consequências bastante desagradáveis, mas isso já é assunto para um próximo Blog.
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Adoráveis retrospectivas de vida e em especial do Joly….que além de ser mais um membro da família, tinha atribuições bem importantes no escritório da família….muito divertido! Já estou ansiosa pelo próximo…bjs
Era parte da família o Joly , inteligente e integrado . Era o que se chama o melhor amigo do homem . Hoje se sabe que um cão entende 2.000 palavras, esse entendia tudo.
Muito bom ter um cão de guarda em casa e no escritório de casa! Abraços, Nelson, do RJ.
Nelson, uma bela coincidência, na juventude, minha mãe, Cléa, tinha um vira-latas chamado Joli…. tenho uma foto dela bem mocinha, uns 14 anos, com ele no colo… Um abraço.
Nossa! Conheço você e sua família há tantos anos e nunca tinha ouvido falar do incrível Joly. 🙂 Adorei saber.