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Torre de Babel

Por Nelson Menda

Estudei latim durante intermináveis quatro anos. Era uma das matérias obrigatórias do curso ginasial. Pura perda de tempo, pois era uma língua morta e enterrada desde o fim do Império Romano, há praticamente dois mil anos. Imaginem, caros leitores, obrigar crianças de 11, 12, 13 e 14 anos, a estudar um idioma extinto. Na minha opinião, não serviu para nada, absolutamente nada.

Teria sido muito mais útil utilizar o tempo e a dedicação dos professores para ensinar, por exemplo, inglês. Todavia, dos quatro anos do ginásio somente dois eram dedicados ao ensino do francês ou inglês. Por falar em francês, tínhamos uma professora nativa daquele país que exibia um carregado sotaque. Como exigir dos alunos uma pronúncia correta se nem os próprios mestres se comunicavam com perfeição? Hoje, decorridas várias décadas, não sei a quantas anda o ensino de idiomas estrangeiros nas escolas brasileiras.

A bem da verdade, de muito pouco adiantava matricular os estudantes na Alliance Française ou no Cultural Norte-Americano, como meus pais fizeram comigo naquela época, julgando estar procedendo da maneira correta. Teria sido mais prático enviar-me para uma estada de 6 ou12 meses com parentes ou conhecidos no exterior, como fiz com minhas filhas. Ou, então, contratar babás estrangeiras, como procediam as famílias de posses do passado.

Por falar nas filhas e netos, eles se expressam em inglês com perfeição e, suprema ironia, alguns falam português com sotaque. Quanto a mim, além do português e inglês, sou fluente em espanhol, que comecei a aprender escutando as emissoras de rádio que sintonizávamos, à noite, na minha terra natal, Porto Alegre. E, também, à semelhança com a língua falada e cantada por minha saudosa avó paterna, nascida em Edirne/Andrinopla, Turquia, o ladino. Os linguistas consideram o ladino um idioma tão importante quanto o espanhol.

Com o passar do tempo cheguei a entender a razão das emissoras de rádio uruguaias e argentinas serem ouvidas em Porto Alegre com mais intensidade e nitidez do que as brasileiras do Rio e São Paulo. Era uma questão mais relacionada à topografia do que à intensidade do sinal de cada emissora. O Rio Grande do Sul tem uma cadeia montanhosa que corta o estado na direção leste oeste e Porto Alegre, sua capital, fica exatamente na divisa entre essas regiões. Da capital gaúcha em direção ao Sul não existem barreiras geográficas naturais que impeçam as transmissões radiofônicas. Bastava dispor de uma antena externa em local elevado para captar as emissões radiofônicas.

Tive até um amigo de infância, Feliciano Mesquita, um verdadeiro expert em instalar essas antenas. Como minha avó, que morou com a gente por muitos anos e passava parte do dia escutando rádio, o ladino passou a ser o idioma estrangeiro predominante na nossa casa. É importante mencionar que meu pai, sempre à frente do seu tempo, tinha adquirido uma boa quantidade de aparelhos radiofônicos logo após o final da Segunda Guerra, em 1945, porque, durante aquele conflito, era praticamente impossível encontrar esses equipamentos à venda. Alguns curiosos conseguiam sintonizar as transmissões radiofônicas em um minúsculo aparelho denominado galena, que antecedeu à chegada dos rádios.

Com a vitória dos aliados na segunda guerra o mercado dos rádio transmissores e receptores teve um grande impulso. Graças a isso, chegamos a dispor de vários desses receptores em nossa casa, de diferentes formas e feitios. Um desses aparelhos, instalado na sala de visitas, dispunha do chamado “olho mágico”, um recurso visual na cor verde que se abria ou fechava quando a emissora era sintonizada. A bem da verdade, totalmente desnecessário, pois o próprio ouvido servia para aferir a qualidade da sintonia. Enfim, eram os recursos de que dispúnhamos na era que antecedeu a chegada da televisão, que demorou uma eternidade até dar o ar da graça na provinciana Porto Alegre.

Não poderia deixar de mencionar o aprendizado do hebraico, pois aos 13 anos, eu deveria realizar o Bar-Mitzva, a maioridade judaica. O professor encarregado de me instruir no Hebraico foi o Sr. Sabani, que tinha sido sócio do meu pai em uma indústria de calçados femininos que funcionou – e faliu – no terreno dos fundos da nossa casa. Esses calçados, por sinal, eram muito bem elaborados, mas o estilo Carmem Miranda para uma cidade provinciana como Porto Alegre, pelo jeito, não agradou à clientela gaúcha, bastante conservadora.

Essa preparação para o Bar-Mitzva me obrigava a pegar o bonde Gasômetro, desde a Cidade Baixa, onde morávamos, até o Bom Fim, o bairro judaico de Porto Alegre, onde residia o Sr. Sabani e também meus tios e primos do ramo ashquenazi da família. Era uma longa e monótona viagem de bonde, em que eu fazia questão de ocupar uma janela do lado direito, para usufruir a oportunidade de passar em frente a um bar bastante frequentado pela boemia gaúcha. Nesse estabelecimento reuniam-se, para beber e batucar, mais beber do que batucar, os amigos e admiradores de Lupicínio Rodrigues. Se eu tivesse sorte, podia até vislumbrar o próprio Lupicínio, que costumava escutar nos programas da Rádio Gaúcha transmitidos ao meio-dia.

Por falar em rádio, é importante mencionar que um dos primeiros programas radiofônicos a ir ao ar na capital gaúcha foi “A Hora Israelita” que, acredito, ainda esteja sendo transmitido. Também devo informar que uma das mais importantes redes de telecomunicações radiofônicas do país foi desenvolvida por um grupo de pioneiros judeus oriundos de uma pequena cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul, que acabou dando origem a uma das grandes redes de comunicação do Brasil. Nesse particular, é forçoso reconhecer que grande parte das inovações tecnológicas e científicas do globo contou com a participação de judeus.

Apesar do meu empenho e do esforço do Sr. Sabani, acabei conseguindo identificar as letras e frases do alfabeto judaico, sem, contudo, entender o significado do que estava sendo recitado. Até hoje me emociono quando escuto alguma locução em hebraico, mesmo sem entender na íntegra seu significado, pois meu vocabulário é bastante limitado.

Daí a estranheza a respeito do antissemitismo e de outras manifestações racistas e preconceituosas que surgem de tempos em tempos. Que, na minha opinião, devem ser enfrentadas com argumentos baseados na mais pura realidade, pois não há lugar, tanto no Brasil quanto nos demais países do globo, para a prática de comportamentos e atitudes racistas e preconceituosas.

Quanto ao episódio bíblico do que teria ocorrido na Torre de Babel, quando as pessoas, na vã tentativa de alcançar os domínios do Criador, acabaram se desentendendo, é uma boa explicação para justificar a existência dos diferentes idiomas. Com toda certeza, deve pertence mais ao folclore religioso do que à realidade histórica.

2 comentários sobre “Torre de Babel

  • Ivo Enk
    Cresci na mesma Rua Demétrio Ribeiro, onde os meus pais tinham uma loja de armarinho em geral.
    Foi esta a nossa maneira de sobreviver aqui pois eu e meus quatro irmãos vivemos ali por muitos anos. Daí foi que conheci o Nelson, que depois mudou-se para outro bairro.
    Cada vez que leio estes blogs, tenho uma pequena emoção, porque revivo um pouco a minha infância. A Sra. Marieta, seguidamente vinha na loja, e conversava um pouco com a minha mãe.
    Por sua influência eu pude contatar o Sr. Luzer, tio do Nelson, daí eu pela primeira vez saí da zona e fui residir em Cruz Alta. Trabalhar na Anderson Clayton, onde o Sr. Luzer era o superintendente.
    Mas o meu destino profissional mudou com o tempo. Grande abraço a este médico ortopedista.

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  • Oi Ivo. Nossas vidas se cruzaram por mais de uma vez. Obrigado por ler e comentar meus textos.

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