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Shabat Shalom

Por Nelson Menda

Levei um susto, no bom sentido, quando um fraterno amigo, não judeu, me desejou Shabat Shalom. Teria ele, agnóstico assumido, virado religioso? Pode ser, pois as pessoas tem toda liberdade para escolher suas crenças religiosas, assim como abrir mão ou até mesmo acumular mais de uma fé.

Considero esse amigo um verdadeiro irmão, do ponto de visto da afetividade. Afinal, fomos criados praticamente juntos, mas antes preciso esclarecer alguns fatos a respeito das nossas respectivas famílias.

Meus pais sempre foram solidários com as pessoas desguarnecidas pela sorte. Desde cedo aprendi a auxiliar os mais carentes do ponto de vista financeiro. Felizmente, a cidade em que nasci e passei parte da infância, Porto Alegre, não apresentava grandes bolsões de miséria. Os poucos pobres que conheci, no Rio Grande do Sul, eram louros de olhos claros, grande parte deles descendentes de famílias açorianas oriundas do vizinho estado de Santa Catarina.

Meu pai, exercendo a profissão de contador e trabalhando exaustivamente, conseguiu acumular o suficiente para proporcionar à esposa e os quatro filhos um padrão de vida bastante confortável. Fui testemunha, durante minha infância, a respeito da criação de uma entidade destinada a auxiliar os mais pobres, que ele denominou Liga de Amparo aos Necessitados. Ajudou a adquirir o terreno e a erguer um prédio com madeira doada por voluntários. Nesse prédio foi instalada uma creche, onde as crianças podiam receber cuidados e alimentação adequados enquanto suas mães trabalhavam, geralmente em serviços domésticos. Foi nesse local, por volta dos anos 50 do século passado, que conheci aquele que viria se transformar no meu único irmão.

Era um garoto dois anos mais novo e extremamente inteligente. Sabia se relacionar com as demais pessoas, independente da condição social. Minha mãe logo reconheceu a inteligência e capacidade de comunicação do jovem, procurando matriculá-lo em uma escola privada mantida por uma entidade protestante. Conseguiu uma bolsa de estudos para que o menino pudesse frequentar a escola como interno. Foi preciso preparar o chamado enxoval, para que o garoto pudesse frequentar a instituição com igualdade de tratamento perante os demais alunos. Além das aulas convencionais, o menino se encantou com a biblioteca do estabelecimento e em pouco tempo já tinha devorado praticamente todo seu o acervo. Para encurtar a história, esse jovem se destacou no terreno da literatura, tendo redigido e publicado vários livros, além de brilhado no ramo da publicidade.

Nos tratamos como irmãos, daí a estranheza dele ter me desejado Shabat Shalom, pois sempre o considerei uma pessoa desprovida de convicções religiosas. Na realidade, o que aconteceu foi o fato dele ter conhecido, por uma feliz coincidência, amigos meus judeus. Prova de que o mundo é, realmente, bem menor do que imaginamos.

Shabat Shalom para você também, José Guaraci Fraga.

Foto: Seguinte

3 thoughts on “Shabat Shalom

  • Tirtsa

    Procurei o final da história e fiquei no vácuo. Achei que faltou um desfecho.

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    • Nelson Menda

      Nesse caso, vamos ao final. O autor reside, atualmente, em uma localidade da Flórida, ao passo que o irmão continua morando em Porto Alegre, onde continua produzindo textos e ilustrações para veículos de comunicação. A Liga de Amparo aos Necessitados ainda funciona no mesmo endereço. O que mudou foi o nome da vila, que passou de Mato Sampaio para Bom Jesus. Porto Alegre, que só dispunha de uma favela e era considerada um local seguro, atualmente é uma cidade violenta. Para piorar, o muro de contenção planejado para protegê-la das enchentes não foi concluído e o chamado centro histórico já foi inundado mais de uma vez. O Colégio Cruzeiro do Sul, onde meu irmão estudou, já não existe. O Guaraci reside em um prédio de Porto Alegre que foi poupado pela cheia, mas ficou sem abastecimento de água durante muito tempo. O Centro Hebraico Riograndense, única sinagoga sefaradi do Rio Grande do Sul, está às moscas, por falta de frequentadores. Todos esses fatos me fazem recordar da melodia “Eu Era Feliz e Não Sabia”, do meu xará Nelson Ned.

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