Reminiscências
Por Nelson Menda
Concluí a Faculdade de Medicina pela Universidade Federal de Santa Maria em 1966. Depois de seis longos anos em que o país atravessou mais uma de suas cíclicas crises políticas poderia, enfim, retornar a Porto Alegre, minha cidade natal, e me preparar para o próximo desafio.
Não posso dizer que a estada em Santa Maria tenha sido uma fase agradável da minha vida. As aulas começaram em março de 1961 e meu pai caiu de cama logo após ter me levado à estação da Viação Férrea, na capital gaúcha, onde peguei o trem para Santa Maria. Foi uma cansativa viagem noturna, em que era praticamente impossível conseguir dormir, pelo ruído e sacolejar dos vagões.
A malha ferroviária gaúcha, bastante extensa, tinha sido construída, intencionalmente, em bitola estreita, por razões puramente estratégicas. Como os trens argentinos rodavam em trilhos de bitola larga, esperava-se, não se sabe para quando, uma possível invasão do sul do Brasil pelo exército do país vizinho que, felizmente, nunca aconteceu.
Não lembro se, em 1961, as locomotivas ainda eram movidas a vapor ou já utilizavam óleo diesel, somente que a viagem foi bastante longa. Como se não bastasse, a empresa belga que havia implantado a malha ferroviária gaúcha, a Compagnie Genèrale des Chemin de Fer des Etats Unis du Brésil, tinha assinado um contrato prá lá de favorável para ela própria, pois iria receber por km de trilhos assentados. Essa cláusula estimulou a empresa a promover um traçado cheio de curvas, bem mais rentável para a contratada e oneroso para o contratante, ou seja, o governo brasileiro. Assim, uma viagem que poderia ser realizada em seis horas acabava demorando o dobro do tempo.
Por via rodoviária, naquela época, também era um sufoco, pois as estradas eram de terra e os ônibus precisavam cruzar, em uma precária balsa, o vasto Rio Jacuí, com suas perigosas corredeiras. Ou seja, morar em Porto Alegre e estudar em Santa Maria, naquele longínquo 1961, era uma espécie de penitência, que eu próprio tinha decidido enfrentar e já explico o porquê.
Poderia ter tentado fazer as provas do vestibular em Porto Alegre, pois tinha estudado bastante e me considerava preparado. Só que as direções de ambas as faculdades, intencionalmente, organizavam o calendário para que pelo menos uma das provas ocorresse no mesmo dia, obrigando os candidatos a optar, previamente, por uma ou outra instituição.
As aulas começaram em março, meu pai precisou se internar em um hospital poucos dias depois e faleceu em maio daquele ano. Ele já estava doente, mas era uma época em que os assuntos de saúde eram mantidos sob um manto de secretismo. Foi uma das fases mais difíceis da minha vida, em que a alegria de ter sido aprovado no vestibular e poder me preparar para a sonhada carreira médica ficou atravessada pela perda do meu pai, justo no momento em que estávamos começando a nos entender como adultos.
Para complicar a situação, o Brasil estava entrando em mais uma fase de turbulência política, que teve início com a renúncia do Presidente da República, um destrambelhado, em que o país quase entrou em guerra civil. Houve um movimento de resistência a uma tentativa de golpe militar, para impedir a posse do Vice-Presidente, que estava em missão oficial no exterior. Meu estado natal, o Rio Grande do Sul, foi o epicentro dessa crise, pois o governador do estado, não por acaso parente do Vice-Presidente, liderou o movimento pela posse do cunhado.
Imaginem a confusão na minha cabeça: a tensão do vestibular, a alegria de ter sido aprovado, a mudança para Santa Maria, associados à tristeza pela doença e falecimento do meu pai, mais uma baita crise político-militar no meu estado natal, tudo praticamente ao mesmo tempo. Fiquei dividido entre Porto Alegre e Santa Maria, a família e o curso médico. Reconheço, passado tanto tempo, que foi um período de muita tensão para um jovem que recém tinha completado 19 anos.
Além de cursar a faculdade, comecei a trabalhar como atendente no SAMDU, Serviço de Assistência Médico Domiciliar e de Urgência. Apesar de ficar sobrecarregado com as aulas na faculdade e os plantões, aprendi muita coisa com os médicos e os colegas mais velhos que trabalhavam no SAMDU.
Durante o sexto e último ano da Faculdade tive a oportunidade de realizar um estágio no serviço de Ortopedia do Hospital de Clínicas da USP, estabelecimento médico modelar. Foram dois meses de extrema importância para a escolha da especialidade que abracei e exerci durante a maior parte da minha vida profissional. Guardo boas e gratificantes lembranças daquele período, em que conheci pessoas de extremo valor.
Como nem tudo na vida são rosas, também topei com a Nutricionista chefe daquele serviço, uma megera que decidiu implicar com minha presença e de um outro estagiário gaúcho. Não sei bem a razão, mas ela decidiu que não poderíamos fazer as refeições no hospital. Vou tentar explicar o possível motivo para essa implicância.
Era muito, mas muito difícil, conseguir um estágio no Hospital de Clínicas de São Paulo e as poucas vagas destinadas, preferencialmente, aos alunos da própria USP. Consegui, com um colega de Santa Maria que havia feito Residência naquele hospital, saber o nome do Diretor e do Vice-Diretor do Serviço de Ortopedia. Caprichei no vernáculo e escrevi uma carta para o Vice-Diretor, substituindo, intencionalmente, a posição que ele ocupava, passando a tratá-lo como se fosse o chefe do serviço. A fogueira das vaidades sempre funciona e o sonho de todo vice é ascender à posição de chefe.
A condição para poder frequentar o Serviço de Ortopedia e participar das cirurgias, ambulatórios, aulas teóricas e plantões da emergência era não onerar a instituição com hospedagem e alimentação. Mas como proceder se o Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas funcionava em um prédio isolado e distante? Onde pernoitar e fazer as refeições? O expediente começava às 7h da manhã e, dependendo das emergências, seguia noite adentro.
Sexto-anista que se preze tem de aproveitar todas as oportunidades de praticar, ainda mais no maior complexo hospitalar do país. Como seria humanamente impossível passar dias e noites sem nos alimentarmos, logo descobrimos que os plantonistas da emergência podiam solicitar suas refeições por telefone caso estivessem operando. A partir desse dia começamos a reservar nossas refeições, por telefone, ao Serviço de Nutrição. Em um dia eu e meu colega e amigo de Santa Maria éramos o Dr. Fulano e Beltrano, no outro Dr. Sicrano e assim por diante.
Estava tudo indo muito bem até o dia em que a chefe da Nutrição, como autêntica desmancha-prazeres, resolveu nos encurralar em um corredor do último andar para nos apontar como penetras. Fomos andando por um longo corredor, procurando nos esquivar da peça, que poderia atrapalhar nossos planos e acabar com o estágio caso fôssemos denunciados. Quando já estávamos praticamente cercados, como que por milagre abriu-se uma pequena porta em um elevador que transportava comida em enormes panelões. Não tivemos dúvida. Entramos, nos acomodamos junto a uma das grandes panelas e apertamos o botão de descida. Acabamos dentro da cozinha do hospital, de jaleco e tudo. Saímos, cumprimentamos os cozinheiros, que ficaram estupefatos com aquela estranha aparição, demos boa noite e caímos fora o mais rápido possível. A megera desistiu de nos perseguir, procuramos não chamar muito a atenção dali em diante e conseguimos completar o período de estágio.
Esse meu colega, por sinal um excelente clínico, decidiu ficar em São Paulo, fez concurso e ingressou em um outro hospital de excelência onde passou a atuar na UTI. Quanto a mim, fiquei fascinado pelo que vi e aprendi no Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas de São Paulo e acabei optando por essa especialidade quando decidi migrar de Porto Alegre para a cidade dos meus sonhos, o Rio.
Além dos episódios relatados, ainda lembro, até hoje, de uma órtese para membro inferior que pertenceu ao Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt, que teve poliomielite e doou a peça, para ficar exposta em uma vitrine do hall de entrada da COT, como o Serviço de Ortopedia do Hospital das Clínicas era chamado.
No Rio, fiz residência no Hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel e consegui ser contratado para trabalhar no Serviço de Ortopedia do Hospital de Ipanema, onde permaneci até me aposentar.
É impressionante como a atividade médica permite que se construa um vasto e selecionado círculo de amizades. Praticamente um ilustre desconhecido quando cheguei à antiga capital federal, acabei conquistando, com o passar do tempo e parafraseando a canção de Roberto Carlos, “Um Milhão de Amigos”. E, justiça seja feita, outro tanto de amigas. Amizades que continuamos a cultivar até à atualidade, apesar de fisicamente distantes, graças à Internet e essa mescla de tecnologia e criatividade criada por algum gênio e que, por mais que me esforce, até hoje não consegui entender direito como se remunera. Estou me referindo ao WhatsApp, essa milagrosa e acessível ferramenta que revolucionou as comunicações e deve ter deixado as antigas e caras empresas de telefonia a ver navios.
Foto: Hospital das Clínicas – Faculdade de Medicina da USP, 1951
Meu querido irmão.
Como sempre, seus textos são muito bons e de ótima qualidade.
Quanto a renumeração do WhatsApp se faz através de compartilhamento com o facebook e Instagram que são na realidade empresas de marketing com propaganda de outras empresas. Todas suas informações pertencem ao mesmo grupo.
E vida que segue…
Abcs
Prezado Sergio. Agradeço sua resposta e esclarecimentos a respeito do patrocínio do WhatsApp, mas continuo achando que é um privilégio, para as pessoas da atual geração, poder contar com um serviço de qualidade e custo simbólico. Sou do tempo em que, para se enviar uma informação com uma certa urgência, era preciso ir até uma agência dos correios, redigir e pagar por um telegrama que nem sempre chegava. Conheci um médico que trabalhou nos Correios quando cursava a faculdade e relatou que os próprios funcionários selecionavam os telegramas que deveriam ser entregues e os que iriam direto para a lata do lixo. Grande parte da correspondência enviada para determinadas cidades do país é interceptada por quadrilhas armadas à procura de dinheiro que pessoas mais humildes costumam encaminhar, dentro de envelopes, aos seus parentes.
Bah, Nelsinho, kibon que nosso HD pessoal, os neurônios, conseguem guardar tanta coisa relevante. No meu caso, adotado pelos Menda a partir de 1959 (morei um ano inteiro na rua Visconde do Herval 1238 antes de ir pro internato do Colégio Cruzeiro do Sul, como bolsista). Ao acompanhar o dia a dia dessa generosa família (a Marieta conseguiu a minha bolsa), minha vida mudou infinitamente para melhor.
Lembranças do período 1959/1962, não faltam, a maioria ótimas, divertidas, prazerosas.
No caso deste episódio da tua viagem, sou testemunha ocular e privilegiada: eu estava na pequena comitiva que te acompanhou até à antiga estação ferroviária, ali na Voluntários da Pátria, não longe da Ponte do Guaíba. Éramos quatro: Alberto, Marieta, a Mari e eu. Um detalhe que recordo vividamente é o teu pai, no último momento antes do teu embarque, puxar a carteira recheada e de lá tirar meia dúzia de notas de mil cruzeiros, o Cabral. Era, na época, uma oequena fortuna. Espantado porque nunca vira tanto dinheiro graúdo junto, ouvi o pai dizer pro filho: Toma esse dinheiro a mais, podes precisar. Eu sabia que o Nelson já tinha recebido um volume bem maior de dinheiro, para se instalar em Santa Maria e suprir todas as suas necessidades na nova vida. Quando o trem partiu, ficamos um pouco ali, os quatro e a emoção daquela separação. Em seguida entramos no Dodge verde-piscina e voltamos pra Visconde do Herval. E o resto daquela noite é névoa pra mim.
Eu só sei que era março e que tudo parecia bem naquela adorável família. Não esperava que, dali a dois meses, seu Alberto não estaria mais entre nós. Em maio, preso no internato (que eu achava o melhor lugar do mundo pra estudar, e ainda acho), fui um dia avisado do falecimento do Alberto Menda, um choque repentino e sem explicação. Não fui convidado a participar das cerimônia fúnebre: não sei se pra me poupar de dor maior, se pelo fato de não ser judeu, se por puro esquecimento da família em meio à turbulência da perda. Só sei que por todo aquele ano, nas vezes em que passava os fins de semana naquela imensa e acolhedora casa, o assunto doença nunca foi compartilhado comigo, só o silêncio compungido de todos.
Só muitos anos depois, no apartamento da Marieta no Rio, eu e ela conversamos longamente sobre a perda precoce do marido. Conversa serena, distante do drama oculto em torno da saúde do seu amado. Lembro de ter perguntado porque não tinham me convidado para o ritual de despedida. Ela não lembrava, não sabia. E nunca mais tocamos no assunto.
Espichar detalhes de um momento é sinal que não queremos nos desfazer de nada valioso ao redor dele, alegre ou doloroso. E na minha memória, que começa a ter tilts, há incontáveis situações que vivi e convivi com os Menda que quero preservar enquanto viver. Devo muito a eles, sou quem sou por causa deles, e o Nelson é o irmão mais velho que nunca tive, que admiro desde eu menino e ele adolescente. E aquele instante na ferroviária é indelével: eu também fiquei muito emocionado com o trem sumindo na escuridão.
(No ano seguinte estive em proveitosas férias com o Nelson em Santa Maria, mas isso é outra inesquecível história. Desculpem essa longa carona nas reminiscências dele, é a distância que reforça meu apego a ele. Ainda bem que existe o whatsapp e podemos nos ver e rever em lives sempre que queremos.)
(Em tempo: minha ligação com os Menda está melhor descrita neste texto de março/2007, na minha coluna no portal Coletiva.Net. Quem quiser ler, basta acessar; https://www.coletiva.net/colunas/os-menda-e-eu,176567.jhtml)
Nelson, apesar de todos esses episódios terem ocorrido há 60 anos, ainda me recordo dos acontecimentos. Logo que teu pai ficou doente, a família descobriu que havia um remédio que poderia curá-lo. Chamavam de “guisado” e somente existia em Montevideo. A família concordou com a ida do meu pai lá visando adquirir o remédio. Lembro-me de passar tardes e tardes na Visconde do Herval. Gostava da ampla casa. No primeiro andar existia um quarto onde se podia escutar as conversas do térreo. A gente fazia fila para encostar o ouvido numa tomada.
O enterro do tio Alberto foi o primeiro na minha vida. Não sabia o que esperar no cemitério. Tinha medo (e até vergonha) de ver a tia Marieta chorando. Mas lá chegando, para minha surpresa, ela estava serena e calma, confortando os demais. Aquele gesto me deixou aliviado e foi uma lição que guardei.
Como morador da cidade baixa, perto do Palácio Piratini também vivenciei a Legalidade. Mas isso é papo para outro dia.
Grande abraço e comunico que terminei meu quarto livro. Espero que a pandemia termine em breve para para editá-lo.
Isaac Newton
Oi, Isaac. Parabéns pelo lançamento do quarto livro. Pelo jeito sua memória continua afiada, pois vc. lembra de fatos que eu já tinha esquecido. Vários acontecimentos marcaram aquele quartinho ao lado do sótão da casa da Visconde do Herval, além de poder escutar, por um conduíte, as conversas do andar térreo. Nesse quartinho funcionaram o estúdios da Rádio Gambá (Grêmio Atlético Mocidade Bem Alegre), com transmissões ao vivo de entrevistas de moradores das redondezas, uma proeza tecnológica do Joca, também conhecido como Professor Pardal. Foi dele a idéia de construir uma antena parabólica, com a utilização de chapas de zinco retiradas do galinheiro, que conseguia captar uma televisão da Venezuela!!! Era preciso que um voluntário subisse no telhado e ficasse direcionando a antena para que o som e as imagens aparecesem na tela do televisor em P&B da Phillips. Isso muito tempo antes da TV Piratini iniciar suas transmissões. Tanto a Rádio Gambá
quanto a captação de TV da Venezuela tiveram de ser suspensas depois que meu apareceu de surpresa e mandou parar com aquelas atividades “perigosas”. Isso explica a razão do Brasil não ter sido pioneiro em uma série de novidades tecnológicas, pois era tudo proibido no Brasil dos anos sessenta.