Recordações
Por Nelson Menda
A memória, muitas vezes, costuma pregar peças. A minha, particularmente, é capciosa, pois só retém o que ela quer, como se tivesse vontade própria.
Durante os primeiros anos da escolaridade, quando era preciso dispor de boa memória, costumava ser traído por ela nos momentos mais importantes. Existe até uma falácia, de que os episódios desagradáveis do passado costumam ser esquecidos. Não é o que acontece comigo. E ainda ocorre, apesar da peculiaridade de que os seres humanos esquecem o que ingeriram no almoço do dia anterior. Nesse particular, devo acrescentar que ela funciona, comigo, às mil maravilhas, mas quando mais preciso dela a danada nega fogo.
Querem alguns exemplos? Durante o curso ginasial, os alunos iniciavam, ao lado do português, o aprendizado de uma língua estrangeira, usualmente francês ou inglês. Sem falar no latim, língua morta que fui obrigado a estudar durante quatro longos anos, com a desculpa de que servia de base para o português. Conversa fiada, pois foi pura perda de tempo.
Frequentei o curso ginasial no Colégio Farroupilha, em Porto Alegre, localizado, naquela época, em um prédio bastante antigo. Comentava-se que, nesse mesmo local, anteriormente, havia funcionado uma escola alemã, que deve ter sido obrigada a mudar de nome durante a Segunda Guerra. Aquela escola, além de cara, estava situada em um local distante da nossa casa, o que me obrigava a pegar dois bondes para ir e outros dois para retornar, de segunda a sexta-feira.
Nos quatro intermináveis anos de ginásio não consegui fazer uma única amizade entre os colegas, a maior parte dos quais descendentes de alemães. Ora, se eu não era alemão, por que diabos frequentava uma escola germânica? A razão era a maluquice da minha genitora, que apreciava a férrea disciplina germânica. Não que eu fosse um adolescente indisciplinado ou rebelde, comportamento que só viria a adotar algum tempo depois.
A melhor escola secundária de Porto Alegre, além de pública, era gratuita, mas tinha fama, entre a temerosa classe média da capital gaúcha, de ser um “antro de comunistas”. E era mesmo, pois abrigava os chamados “estudantes profissionais”, que ficavam repetindo de ano para poder cumprir suas tarefas político-partidárias impostas pelo partido.
No Farroupilha, a única matéria em que me destaquei foi a de música. Como estudava violino há alguns anos, era capaz de entoar uma melodia a partir da pauta. Certo dia, durante uma aula de música, o professor daquela matéria descobriu que eu tinha bom ouvido e era bastante afinado. Passei a ser o queridinho dele, ao mesmo tempo em que grande parte dos colegas, especialmente os desafinados, passou a me detestar.
Frequentei aquele estabelecimento escolar durante quatro intermináveis anos. Não guardo boas recordações daquela época. Quando concluí o ginásio, minha genitora insinuou que eu deveria continuar os estudos em um estabelecimento similar. Me rebelei, bati pé e exigi que me transferissem para o Colégio Júlio de Castilhos, uma escola pública que contava com os melhores professores de todo o Rio Grande do Sul. Felizmente consegui sair vitorioso dessa contenda.
A capital gaúcha, naquela época, dispunha de uma coletividade judaica expressiva, constituída por oito distintas sinagogas, inclusive uma do rito Sefaradi, que frequentávamos. A coletividade Asquenazi gaúcha, mais numerosa, residia no Bom Fim, ao passo que os Sefaradis moravam no Centro ou na Cidade Baixa.
Acho que ainda não mencionei o fato de ser filho de um casamento misto, ou seja, pai Sefaradi e mãe Asquenazi. Apesar disso, a culinária predominante na nossa casa, ao lado do feijão com arroz, era toda à base das iguarias judaicas orientais ou ibéricas, como o feijão branco, os tomates recheados e as saborosas fatias de beringela, ou merendjena, como eram denominadas em ladino.
Ao completar 12 anos comecei a ter aulas de hebraico, em preparação para o Bar-Mitzvá, que ocorreria um ano depois no Centro Hebraico Riograndense, sinagoga dos sefaradis gaúchos, que chamávamos de Kal. Essas aulas foram ministradas pelo Sr. Sabani, turco como meu pai, que tinha sido seu sócio em uma fábrica de sapatos. Calçados, por sinal, de muito boa qualidade, mas com modelos inteiramente ultrapassados para a época.
Meu pai tinha acabado de construir uma casa na Azenha, bairro bastante simpático da capital gaúcha, onde consegui me integrar a um grupo de amigos, com alguns dos quais convivo até o presente momento. Estudei hebraico durante um ano inteiro, conseguindo dominar a fonética desse idioma, mas sem entender o sentido do que estava sendo recitado. Tempos depois descobri que o hebraico litúrgico que, a duras penas, tinha conseguido aprender, era bastante diferente do idioma praticado em Israel. Na realidade, não falava nem entendia hebraico, apenas os sons de algumas expressões, como Baruch Ashém, por exemplo, que corresponderia ao Graças a Deus do português.
Tenho amigos e amigas de todas as crenças, inclusive alguns agnósticos, com os quais me relaciono sem o menor problema. Além das filhas e netos, que adoro, conto com um seleto time de afilhados e afilhadas, fora os cães, de quem sou fã incondicional. Por falar neles, posso estar enganado, mas tenho a plena convicção de que nossos amigos de quatro patas estão em pleno processo evolutivo de integração aos demais seres humanos. Na minha modesta opinião, será apenas uma questão de tempo eles chegarem lá. Luna, uma labradora folgada que dorme na mesma cama da minha filha mais velha, que o diga.
Foto: Domínio Público (Flickr). Colégio Farroupilha