Porto, Portugal
Por Nelsno Menda
Com a popularização das câmeras de TV portáteis, criar e veicular vídeos caseiros virou tarefa corriqueira. Não é preciso nem de “uma ideia na cabeça”, bastando dispor apenas de uma pequena câmera e sair por aí captando imagens ao acaso.
Alguém teve a genial ideia de utilizar esse recurso para percorrer e registrar imagens de percursos nos mais distintos rincões do globo. Tenho visitado, sem precisar levantar da cadeira, cidades em que já morei ou tenciono conhecer um dia. Não sei quem patrocina essas tomadas de cena, pois não há inserção de material publicitário e acredito que façam bastante sucesso, pois o número de localidades exibidas é amplo e bastante diversificado. Gosto de realizar esses tours por lugares que despertam minha curiosidade, geralmente à noite, antes do sono bater.
Há alguns dias resolvi excursionar, virtualmente, por uma cidade de Portugal que já tinha visitado, pessoalmente, há alguns anos. Conheci, naquela ocasião, sua centenária e mundialmente famosa livraria, a Lello, verdadeira joia arquitetônica, tendo aproveitado para degustar, em um tradicional restaurante da área, um delicioso Bacalhau à Moda do Porto.
Tanto a visita à livraria quanto o almoço, felizmente, foram presenciais. Só que agora, mais despreocupado e distante, minha curiosidade está sendo saciada com calma e distanciamento, sem a menor pressa ou correria, em distintos tours virtuais pela cidade do Porto e arredores.
Iniciei o mais recente passeio por Vila Nova de Gaia, na margem esquerda do Rio Douro que, juntamente com o Tejo e o Minho, formam os três maiores rios de Portugal. Atravessei, em linguagem figurada, o Douro, seguindo em direção à outra margem, pela Ponte D. Luiz Primeiro, até chegar à cidade do Porto propriamente dita.
Essa ponte de ferro, maravilhosa obra de engenharia, inaugurada em 1888, foi projetada pelo Engenheiro Teophile Seyrig, discípulo de Gustave Eiffel, o mesmo que erigiu o monumento símbolo da Cidade Luz. Dessa feita, graças aos vídeos e, após cruzar, “a pé”, a famosa ponte, resolvi esticar o passeio e me aventurar pelos meandros da cidade do Porto. Fiquei deslumbrado e surpreso com o que vi. Conhecia Lisboa bastante bem, mas o Porto apenas superficialmente. Fiquei surpreendido com a beleza arquitetônica de seus prédios e de suas bem cuidadas ruas, praças e avenidas.
Lisboa e Porto são cidades distintas e complementares, como Rio e São Paulo, Nova Iorque e Miami, cada qual com seus atrativos e respectivos fãs clubes. Em geral, quem gosta de uma desgosta da outra. No caso presente, posso assegurar que me encantei com o que vi no Porto, sem abrir mão da simpatia que nutro por Lisboa.
Em relação à cidade do Porto, no Norte de Portugal, é forçoso mencionar alguns de seus personagens mais representativos. Já tinha lido bastante a respeito da saga do Capitão do Exército Português Artur Carlos de Barros Basto, natural de Amarante, pequena cidade no Norte do país. Herói da Primeira Guerra Mundial, Barros Basto descobriu, no leito de morte de seu avô, descender de judeus. Essa revelação promoveu um verdadeiro turbilhão de pensamentos em sua cabeça. Ficou convencido de que deveria não só retornar à fé ancestral como também divulgar o passado judaico de sua própria família e de importante parcela de muitos habitantes das regiões de Trás os Montes e Beiras.
Barros Basto se deu conta de que a Inquisição já tinha terminado há bastante tempo e que havia chegado o momento dos descendentes se assumirem, publicamente, como judeus. Com essa finalidade, decidiu criar um movimento político-religioso, denominando-o “A Obra do Resgate”. Coerente com seu desejo de se assumir, integralmente, como israelita, decidiu se submeter à chamada Aliança com o Criador, ou seja, realizar a circuncisão. Foi preciso viajar até Tanger, no Marrocos, pois em Portugal o Brit Milá, como o procedimento é denominado em hebraico, já não era praticado há muito tempo.
No retorno a Portugal, começou a difundir entre os moradores da chamada raia portuguesa, região limítrofe com a fronteira espanhola, suas pesquisas a respeito da existência de criptojudeus no interior do país. Sua pregação, aliada ao lançamento do jornal Ha-Lapid, que circulou de 1927 a 1958, tanto em Portugal quanto em diversos outros países, foi como um rastilho de pólvora que chegou a ameaçar os alicerces da ultra conservadora Igreja Católica portuguesa da época. Estamos falando dos idos da primeira metade do século vinte, antes da eclosão da Segunda Guerra.
Por essa mesma época o Engenheiro, Arqueólogo e Etnógrafo judeu Samuel Schwarz, de origem polonesa, que supervisionava os trabalhos nas minas de cassiterita e volfrâmio próximas a Belmonte, também no interior de Portugal, ficou surpreendido com as repetidas ausências dos funcionários da empresa aos sábados. Tentou saber com os moradores de Belmonte a razão dessas faltas ao trabalho, mas todos se fechavam em copas. De tanto insistir, Schwarz acabou desvendando um segredo guardado pelas mulheres da região, geração após geração, de que descendiam, efetivamente, de judeus. Em 1925 Samuel Schwarz publicou suas conclusões no livro “Cristãos-Novos em Portugal no Século Vinte” e identificou o prédio em que funcionou a Sinagoga de Tomar, que adquiriu, recuperou e doou à coletividade.
Em paralelo, o Capitão Barros Basto estava à procura de apoio financeiro junto à tradicional família judaica Kadoorie, de Hong Kong, visando levantar fundos para a construção de uma Sinagoga e Yeshivá (escola) na cidade do Porto, até então inexistentes. Aquela intensa atividade religiosa do capitão não passou despercebida pelo governo e o clero português. O mundo assistia, nas décadas de 30 do século passado, a ascensão do nazi-fascismo na Europa e Portugal, em plena ditadura salazarista, tinha optado pela neutralidade. Pressionado pela Inglaterra, Portugal permitiu a entrada de muitos refugiados judeus, desde que não se fixassem no país. Barros Basto auxiliou muitas dessas famílias e foi ficando cada vez mais exposto, o que acabou desagradando os detentores do poder.
Para calar Barros Basto, militar, difundiu-se que era homossexual, o que lhe custou uma expulsão com desonra do exército português. Essa falsa acusação só foi desmentida em 2012, muito tempo após sua morte. Fruto de uma longa batalha judicial travada por seus descendentes, com o reconhecimento de que a acusação, além de falsa, tinha sido engendrada para inibir o crescente despertar da coletividade criptojudaica portuguesa, desejosa de retornar à religião de seus antepassados. Daí Barros Basto ser considerado, por muitos historiadores, o Dreyfus português.
Apesar de combatido e difamado, o capitão conseguiu concretizar seu sonho de construir uma sinagoga, por sinal, belíssima, que ostenta, até os dias de hoje, o nome de seus financiadores, a Família Kadoorie e é considerada a maior da Península Ibérica. Atualmente Portugal possui duas grandes Sinagogas, as de Lisboa e do Porto, além de algumas históricas, como as de Tomar, Belmonte e Castelo de Vide.
Todavia, a marca indelével da presença israelita no dia-a-dia dos portugueses persiste em algumas características comportamentais, assim como no consumo de determinados alimentos. Dentre eles, o “Pão de Parida”, a tradicional rabanada dos brasileiros ou o “Bolo Lêvedo”, pão ázimo correspondente ao matzá consumido na Semana do Pessach, a Páscoa Judaica. Sem falar que um dos mais ilustres e conhecidos poetas e escritores portugueses, Fernando Pessoa, não escondia sua origem judaica.
Portugal em geral e a cidade do Porto em particular são lugares encantadores que, por todas as razões do mundo, merecem ser visitados, presencialmente ou pela Internet. Especialmente agora que a pandemia está sendo controlada – graças às vacinas e aos cuidados com o distanciamento social – e as viagens aéreas, pouco a pouco, liberadas. Quem não puder ir pessoalmente, aconselho que o faça em uma viagem virtual, pela TV. De preferência, enquanto assiste, na telinha, as imagens daquele encantador país, degustando um delicioso, quentinho e crocante bolinho de bacalhau. De lambuja, como sobremesa, um Pastel de Belém, Ovos Moles de Aveiro ou alguma outra iguaria da tradicional culinária doceira portuguesa.
Para quem não curte ou tem alguma restrição ao consumo de doces, aconselho a leitura de alguma obra de Raphael Baldaya, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caieiro ou Bernardo Soares. Não conhece? São os heterônimos, ou pseudônimos, de Fernando Pessoa, que os assumia de tempos em tempos, ao sabor do próprio humor. Qualquer relação com a necessidade de muitos judeus ibéricos precisarem trocar de nome para se proteger dos esbirros da inquisição talvez não seja, apenas, uma mera coincidência.
Meus ancestrais paternos, por sorte, não precisaram mudar seus sobrenomes quando saíram, ou foram expulsos, da Península Ibérica. Adotaram a denominação da aldeia de onde eram originários, na Galícia espanhola. Apenas simplificaram o “de Menda”, uma toponímia, para Menda. Bem mais simples.
Foto: Vitor Oliveira (Flickr)
Excelente texto, como sempre! Um forte abraço, Nelson, da Cecília.
Meu caríssimo Nelson. A primeira vez que ouvi falar sobre o Porto foi através de um almanaque que era publicado anualmente chamado Almanaque do Porto, evidentemente editado por lá, em concorrência com o almanaque Bertrand. Jurei que um dia iria até o Porto para conhecer aquela maravilha que era retratada no almanaque. Me penitencio. Fui à Portugal já duas vezes e só fiquei em Lisboa. O Nelson dá uma bela pincelada sobre os mais diferentes tópicos da cidade e me sinto como se estivesse visitando fisicamente o Porto e não virtualmente. Porto – considere-se visitado!
Uau casualmente aqui em Puerto Rico temos uma cafeteria portuguesa com a especialidade em Pastéis de Belém, são feitos na hora e se come quentinhos….maravilhosos!
Quando regressares a ilha te levaremos para que disfrutes!
Abs.