Os testemunhos de Gaza e de Auschwitz e o inenarrável
Por Mary Kirschbaum
“Achei que morreria em Gaza”, diz uma das três reféns recém-libertadas do cativeiro, após 471 dias, nas mãos de terroristas do Hamas.
Primo Levi, um dos primeiros testemunhos do Holocausto, sobreviveu à estada no campo de concentração de Auschwitz e escreveu em “É isto um Homem?” sobre a degradação, humilhação, destruição, aniquilação de seres humanos nos campos. A história parecia tão absurda que ninguém acreditava nele, nem queria ler o que ele relatou no seu livro, a princípio.
Tanto nossos queridos reféns quanto os sobreviventes da Shoá, que com a “graça de Deus”, escaparam do inferno, sofrem para narrar o “inenarrável. Como falar do horror, da crueldade, da falta de dignidade a que seres humanos foram e estão (ainda temos mais de 90 reféns em Gaza) submetidos à mercê do poderio de outros “seres humanos”. Com que direito um dito “ser humano” aprisiona outro e realiza atos quase “não descritíveis” com outros seres humanos?
Relatos de estupros, torturas. Aviva Siegel, uma ex-refém libertada depois de 51 dias de cativeiro declarou: “Foram 51 dias no inferno. Ninguém esquece uma coisa assim. Fui torturada, passei fome, tive sede. Não tinha oxigênio”.
Os relatos inenarráveis do vivido nos campos de concentração, durante a segunda guerra. Segundo Primo Levi, “os prisioneiros já vinham viajando em trens, apinhados nos vagões, depois de uns quatro dias de viagem sem dormir e sem água. Chegando nos campos, eram separados entre os que iriam direto para as câmaras de gás, alguns eram mortos ali mesmo, a sangue frio, e os outros que iriam ficar aguentando o horror dos trabalhos forçados, eram tatuados com os números no braço, raspados os cabelos”. Ainda segundo Primo Levi, “tiraram nossas roupas e nos revestiram com trapos imundos listrados. Não somos mais homens. Ninguém espera sair. No dia seguinte começa o trabalho, e para quem não morre continuará por 11 meses, sem um dia sequer de descanso… apanhamos para valer, pois nenhum de nós entende alemão…”
Bem, Primo Levi, este judeu, químico e escritor italiano (1919-1987), sobrevivente do campo de concentração de Auschwitz- Birkenau. Testemunho vivo das atrocidades, relatou sua experiência junto com os judeus do complexo de Auschwitz e dá voz aos ausentes, aos que foram silenciados pela inexistência física no pós-guerra, aos que foram as verdadeiras testemunhas do período que conhecemos por Holocausto. Segundo ele, não pode haver uma verdadeira testemunha, porque os únicos que poderiam ser testemunhas autênticas foram mortos.
Em “O que resta de Auschwitz”, livro do italiano Giorgio Agambem, é relatado sobre o que “nos” resta. O que sobrevive à possibilidade ou à impossibilidade de falar. Na medida que os habitantes dos campos de concentração, foram despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente à vida nua, sem lei e sem direitos de garantia, de formas de vida humanas, minimamente necessárias à sobrevivência física e psíquica.
Desprovidos de dignidade, estes cidadãos judeus do Holocausto e os cidadãos Israelenses mantidos reféns em Gaza, que com a ajuda de Deus ou sabe-se lá de quem, conseguiram retornar para nos relatar o indizível, o não dito, o inenarrável. Ainda assim eles estão testemunhando.
Há aqueles que não falam. Hurbinek foi o nome dado pelos reféns libertos de Auschwitz a um menino de uns três anos sem nome e sem fala. O menino não sobrevive, morre “nos primeiros dias de março de 1945, liberto mas não redimido”, escreve Levi, que conclui: “Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras”. O menino Hurbinek não conseguiu passar da infância (infans, que não fala), à juventude loquaz (puer loquens, como diz Santo Agostinho). Como toda linguagem humana repousa sobre essa separação entre voz e linguagem, assim também toda vida política em comum repousa sobre o abismo dessa vida nua que nos assemelha aos bichos. O que Auschwitz nos legou também é a exigência profundamente nova para o pensamento filosófico e, em particular, para a ética, de não nos esquecer nem da infância nem da vida nua. Em vez de recalcar essa existência sem fala e sem forma, sem comunicação e sem sociabilidade, saber acolher essa indigência primeva que habita nossas construções discursivas e políticas, que só podem permanecer incompletas (Jeanne Marie Gagnebin, na apresentação do livro: “O que resta de Auschwitz”, de Giorgio Agamben).
Também temos aquela menininha, a Emily Hand, de 10 anos, que quando foi liberta do cativeiro do Hamas, não falava, só sussurrava… ela dizia não poder falar em tom normal lá. Pobre criança, pobre família, pobre futuro, trauma, trauma, trauma…
É o que se espera destas voltas dos reféns, daqueles que tiverem a “sorte” de voltar… e daqueles que tiveram a sua nova chance na vida, o seu renascimento, ainda assim… Como testemunhar o não enunciável, o não arquivável, o indizível, aquilo que se têm vergonha, a humilhação aguentada, porque foram e são vítimas inocentes de situações extremas, limites, suportadas ou não. Mas que ainda assim voltam para testemunhar.