O judaísmo Galitzianer. De Zolkiew e Tartakow a Belz
Por Marcos L Susskind
A Galícia é uma região histórico-geográfica da Europa centro-oriental. Foi parte do Império Austríaco (de 1864 a 1918) e hoje seu território é dividido entre a Polônia e a Ucrânia. A área foi mencionada pela primeira vez em crônicas medievais húngaras do ano de 1206 como Galiciæ. Em 1352 foi anexado pelo Reino da Polônia.
Os judeus locais eram pequenos comerciantes e artesãos – carpinteiros, chapeleiros, ourives, barbeiros e principalmente alfaiates – 80% de todos os alfaiates na Galicia eram Judeus. A Galícia foi por inúmeros anos um imenso centro de vida judaica bastante pobre materialmente mas tremendamente pujante intelectualmente. Vamos a alguns números:
No início da II Guerra viviam na Galícia quase 1.000.000 de judeus. Os poloneses eram 45% da população, rutênios eram 43% e judeus eram 11%. Os judeus galitzianers foram estereotipados como incultos, místicos, rudes e comercialmente inescrupulosos. No entanto, dos 1700 médicos da região, 1150 eram judeus; 41% dos trabalhadores na área cultural, teatros e cinema, 43% dos dentistas, e o inacreditável número de 2200 advogados eram judeus – enquanto havia apenas 450 advogados rutênios. O judaísmo galiciano deu quatro Prêmios Nobel: Isidor Isaac Rabi (física), Roald Hoffman (química), Georges Charpak (física) e S.Y. Agnon (literatura). O grande escritor Henry Roth, também era um judeu galiciano.
A cidade de Lviv, que os judeus chamavam de Lemberg (interessante: os judeus tinham nome diferente para esta metrópole) era um centro de literatura iídiche. Um de cada três habitantes era judeu. O primeiro jornal diário em iídiche, em todo o mundo foi o Der Lemberguer Togblat já no início do Século XIX. Na guerra Polônia x Ucrânia os judeus formaram um batalhão exclusivamente judaico, o Zhydivs’kyy Kurin (UHA) e por sua lealdade foram agraciados com 10% das cadeiras no Parlamento. Mas não tardou muito e os ucranianos, outrora gratos aos judeus, iniciaram os imensos pogroms que causaram incontáveis mortes – mas preservaram os, judeus galitzianers. Dos 1.000.000 de judeus em 1939, hoje a Galicia conta com cerca de apenas 20.000!
Os galitzianers eram desdenhados pelos judeus lituanos por serem profundamente místicos e hassídicos, considerados pouco educados. Já os judeus galitzianers desdenhavam os judeus lituanos a quem chamavam de tseylem-kop, assimilados e “quase cristãos”. A rivalidade permeada pela fé, pelas profissões e até pela alimentação com a célebre “Fronteira do Guifilte Fish” definindo o tipo salgado do tipo doce!
Judeus galitzianers viviam nas cidades e nos “shteitls”, aldeias. Os não judeus eram majoritariamente campesinos e o conflito entre o homem rural versus o urbano era bastante evidente e talvez uma das razões do antissemitismo. A pobreza do homem rural gerava a pobreza dos comerciantes “urbanos”, o que explica o alto nível de pobreza dos judeus galitzianers. 25% deles dependiam de ajuda comunitária. Roman Yarosevych, médico ucraniano, escreveu a seu amigo escritor Ivan Franko: “Quando sou chamado a um paciente judeu, praticamente sempre dou a mesma receita: comida. A resposta a essa receita é um gesto silencioso. E isto diz tudo…”
No Século XIX os judeus da Galícia começam a buscar educação universal. Rapidamente se transformam em médicos, advogados, escritores, funcionários públicos e políticos. Os não judeus não dão importância à nova onda educacional. Apenas 0,4% dos não judeus buscam profissões liberais, enquanto cerca de 22% dos jovens judeus o fazem. Isto vai criar, no fim do século XIX, um crescente ódio aos judeus que dominam muitos cargos importantes, tanto liberais como governamentais. 12 de cada 15 funcionários do governo na Galícia eram judeus no fim do Século XIX! Eis um terreno fértil para as teorias da “dominação judaica” e da “conspiração judaica”. Neste ambiente aparece Teofil Merunowicz (1879) com nova forma de antissemitismo que vai permear a Galicia, depois a Polônia chegando à Áustria e Alemanha. O nacionalismo vai se transformando em xenofobia. A cidade de Lviv (Lemberg) é impregnada de antissemitismo até o último grão de poeira urbana. Os ucranianos já odeiam os judeus mas na Galícia não os perseguem pois têm os poloneses como inimigos comuns, criando simpatia entre nacionalistas ucranianos e lideranças judaicas. Isto não se repete no resto da Ucrânia, fanaticamente antissemita, geradora de pogroms imensos.
O hassidismo, a corrente judaica altamente mística e emocional floresceu na Galícia. Grandes “cortes hassídicas” se originaram na região. Por exemplo, Sanz, Ziditchover, Belz, Melitz, Kosov, Bobov e Skolie são algumas das importantíssimas dinastias hassídicas originárias da Galícia. Todas, na II Guerra, sofreram perdas imensas de seus líderes e seguidores, suas instituições de ensino e suas sinagogas – algumas desapareceram enquanto algumas poucas conseguiram se reerguer no pós-guerra.
E aqui vem, finalmente, minha menção ao título. Meu pai z”l era de Tartakow e minha mãe z”l de Zolkiew. Eu perdi meu pai muito garoto, no despertar de minha adolescência. Sei que meu avô paterno z”l, de quem levo o nome, era Hassid – mas não sei de qual Hassidut. Como ele era de Tartakow, Galícia, há uma razoável possibilidade que fosse Hassidut de Belz. Já minha família materna era com certeza “Belzer”. Meu avô Herz z”l (no Brasil virou Germano) era de Zolkiew e foi até Belz para receber a autorização e a benção do Rebe para casar-se com minha avó Malka z”l. Portanto a Hassidut Belz permeou para minha mãe e foi referência em minha infância.
Nos últimos meses, o mundo passa pela pandemia do Covid-19, o coronavírus. Medidas drásticas de confinamento foram estabelecidas mundo afora e algumas entidades resolveram agir de forma divergente. Em Israel e também em Nova York há críticas veementes contra os ultra ortodoxos por se negarem a cumprir normas estabelecidas. Estas críticas precisam ser revistas, e eu explico.
Os ultra ortodoxos se dividem em muitas correntes. Em essência há três grandes grupos: Os hassidim, os litaim (também chamados misnágdim) e os sefaradim. Não há sombra de dúvida que os sefaradim e suas lideranças aderem às instruções, fecharam suas Sinagogas e escolas e têm admirável índice de respeito às normas sanitárias, às de confinamento etc. e as lideranças chamam inequivocamente a coletividade ao respeito às normas. Entre os litaim, em muitos casos, ocorre o mesmo, ainda que haja uma pequena minoria que desrespeita mas que é bastante criticada pelos demais. Infelizmente o mesmo não ocorre entre os hassidim. A maioria das lideranças se cala, não condena o desrespeito e, em muitos casos, até incentiva vocalmente a rebelião contra todas as normas sugeridas ou decretadas tanto pelo governo como pelas autoridades médicas.
Entre os mais resistentes estão os seguidores da Hassidut Belz, uma das mais importantes e numerosas em Israel. O casamento do neto do Rebe atraiu multidões que desafiaram o confinamento. E infelizmente, o próprio Rabbi Yissachar Dov Rokeach, o atual Rebe (a máxima autoridade da “corte hassídica”) conclamou seus seguidores a desafiar a lei e seguir rezando nas sinagogas e estudando nas yeshivot, algo de imenso risco na opinião dos experts.
Por tudo isto, como descendente direto de galitzianers que seguiam, acreditavam e se comportavam à luz dos ensinamentos do então Rebe, eu me pergunto: estivessem meus antepassados vivos hoje, e considerando as orientações do Rebe atual, eles seguiriam sendo seus hassidim, respeitando suas diretrizes? Infelizmente jamais terei a resposta… Eu passei a ter sérias restrições ao comportamento dele.
Mas, voltando ao ambiente judaico do século XX: havia desdém e até ódio aos galitzianers. Não tenho evidências de que isto persista, até porque – infelizmente – já praticamente não há galitzianers vivos e seus descendentes há muito perderam a identidade comportamental de seus pais e avós.
Foto: Coleção do Arquivo Digital Nacional, Polônia (via http://shtetlroutes.eu)
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