O difícil retorno ao judaísmo
Por Nelson Menda
Quando tomei decisão de me transferir, de vez, para os Estados Unidos, recebi a incumbência de entrar em contato, o mais breve possível, com um brasileiro chamado Augusto Rocha que residia em Miami.
Augusto, Z”L – de saudosa memória – de quem me tornei um fraterno amigo, era natural de Belo Horizonte e tinha uma história de vida bastante peculiar. Descendia de uma família de judeus obrigados à conversão ao cristianismo há séculos e que, segundo ele, continuava sendo monitorada por representantes da igreja católica mineira. Achei aquilo meio estranho, pois tanto no Rio Grande do Sul quanto no Rio, onde morei, não percebia qualquer tipo de discriminação de cunho religioso. Vai ver, em Minas Gerais os costumes eram outros.
Em plena Guerra do Vietnam, Augusto tinha decidido migrar para os Estados Unidos e se engajar como soldado raso no exército norte-americano. Apesar de ser uma época em que muitos jovens procuravam sair do país, para se esquivar daquele conflito, ele tinha decidido seguir um rumo diametralmente oposto. Ao ser aceito pelo exército dos Estados Unidos, pela primeira vez em muitos séculos alguém da família Rocha – Tzur em hebraico – poderia assumir, plenamente, sua condição judaica. A plaqueta militar de identificação, que ele fez questão de me exibir, evidenciava com todas as letras sua confissão religiosa: Jew. Augusto foi enviado para o Vietnam, como era sua intenção e participou de combates armados, tendo sido ferido em um deles. Finda a guerra, recebeu, a título de compensação, além do direito à cidadania americana, a possibilidade de frequentar um curso universitário à sua escolha. Decidiu seguir a carreira de piloto comercial, que exerceu tanto na América do Norte quanto no Brasil, para onde retornou após o fim daquela guerra.
Quando o conheci, ele já estava radicado, dessa vez de forma definitiva, nos Estados Unidos. Foi preciso que tivessem decorridos vários séculos e a eclosão de um sangrento conflito para que alguém da família Rocha pudesse, finalmente, se assumir plenamente como judeu. Tive a oportunidade de apresentá-lo aos dirigentes do Templo Moses, tradicional Sinagoga Sefaradi de Miami que comecei a frequentar assim que cheguei à cidade. Augusto passou a estudar hebraico com enorme afinco, dando a impressão de estar interessado em resgatar, no menor prazo possível, os séculos de proibição a que seus ancestrais estiveram submetidos. Além disso, utilizando sua experiência militar, se dispôs a organizar um sistema de segurança para neutralizar algumas ameaças que a entidade estava recebendo.
Todavia, a façanha mais extraordinária de Augusto estava relacionada à recuperação da tradição religiosa de seus antepassados, obrigados, sob a permanente ameaça da inquisição, de levar uma vida dupla. Da porta da casa para fora, eram cristãos. Com a porta e as janelas bem fechadas, judeus. Em suas idas e vindas entre o Brasil e os Estados Unidos conseguiu identificar inúmeras famílias aparentemente cristãs que tinham, na realidade, origem judaica. Por sua conta, patrocinou a vinda, de Israel, de dois judeus observantes, para celebrar, pela primeira vez em quinhentos anos de Brasil, uma cerimônia religiosa de retorno, no mesmo local onde Cabral havia rezado a Primeira Missa: Porto Seguro. Esses religiosos fizeram questão de entrevistar os candidatos, para se certificar de que possuíam, efetivamente, ascendência judaica. O objetivo, naquela ocasião, não era o de promover conversões, mas sim o de possibilitar o retorno dos descendentes daqueles judeus que tinham abdicado, sob ameaça da fogueira, da fé ancestral. Os candidatos do sexo masculino foram circuncidados por um médico daquela localidade, o que representou um certo sacrifício e uma prova da real intenção de assumir a tradição de seus antepassados.
Fazendo um parêntesis, é importante ressaltar que o Brasil foi o país que recebeu o maior número de cristãos-novos de todo o mundo, muitos dos quais continuaram praticando sua fé, em segredo, no interior de seus lares. Outros seguiam certos costumes, sem se dar conta de que nada mais eram do que práticas tradicionais da religião mosaica. Dentre esses, destacam-se a faxina da casa às sextas-feiras, a recusa em ingerir carne de porco e de certos animais marinhos, como crustáceos. Também eram usuais os casamentos entre primos, dentre outros hábitos tipicamente judaicos.
Dispostos a resgatar a herança religiosa de seus antepassados, além de Augusto muitos outros brasileiros criaram coragem e decidiram se assumir, publicamente, como judeus. Todavia, o afastamento da religião de seus avós tinha provocado mudanças comportamentais importantes e nem todos os rabinos atuantes no Brasil estavam familiarizados com o que tinha acontecido com os judeus da Espanha e Portugal durante a inquisição. As próprias conversões eram temas extremamente conflitantes sendo, ao mesmo tempo, permitidas ou negadas, dependendo da orientação de cada corrente religiosa. Por sorte, algumas lideranças judaicas decidiram abraçar a questão Anussim, como são denominados, em hebraico, os descendentes daquelas pessoas obrigadas à conversão pela força.
Esse fenômeno ocorreu em diversos países, com destaque para o Brasil, país que, como afirmamos, recebeu o maior número de judeus obrigados a se converter ao cristianismo. Talvez o advento da Internet tenha colaborado para esse fenômeno de conscientização por parte de um segmento importante da população brasileira. Começaram a surgir em diferentes pontos do território brasileiro descendentes de judeus dispostos a se assumir, publicamente, como tais.
Como, a cada ação corresponde uma reação, ao mesmo tempo em que uma parte da coletividade judaica recebia esses retornados como irmãos, outra parcela negava o seu reconhecimento. Para aumentar o clima de incertezas, grupos evangélicos de origem norte-americana tinham criado e estavam difundindo no Brasil o movimento Jews for Jesus – Judeus para Jesus – dando a entender que todos deveriam abrir mão da condição israelita e abraçar somente o que preconizava o novo testamento. Alguns desses grupos chegavam a estimular seus militantes a se postar nas calçadas em frente às diferentes sinagogas durante o dia mais sagrado para o judaísmo, o Iom Kipur, o Dia do Perdão, como cheguei a presenciar no Rio.
Por essa mesma época, determinados segmentos evangélicos passaram a utilizar símbolos e ornamentos tipicamente judaicos, como a Estrela de David e a Menorá, o castiçal de sete velas. Alguns pastores, inclusive, começaram a ostentar em seus ombros um Talit, o manto judaico e cobrir suas cabeças com um solidéu, denominado kipá em hebraico.
Para contrabalançar, um grupo de Anussim disposto a retornar à fé ancestral passou a receber o apoio de lideranças comunitárias judaicas antenadas nessa nova realidade. Dentre eles, o ex-Embaixador norte-americano no Brasil, Saul Gefter Z”l, que se engajou na causa desde a primeira hora. Foi seguido por expressivas lideranças comunitárias cariocas e recebeu o apoio religioso de um destemido Rabino Sefaradi Ortodoxo, Abram Deleon Cohen, nascido na Turquia e também radicado em Miami. A sorte estava lançada e tornou-se impossível retroagir. Dentre os próprios Anussim despontaram novas lideranças e algumas vocações rabínicas, que estão empenhadas, no momento, em obter o reconhecimento de sua Sinagoga por parte da Fierj, a Federação Israelita do Rio de Janeiro.
Sob a lúcida direção de Sergio Sobreira, ele próprio um combativo descendente daqueles judeus obrigados à conversão ao cristianismo, foi erguido o primeiro templo israelita Anussim do Brasil, que recebeu o nome de Shaarei Shalom – Sinagoga Hebraica Portuguesa de São João do Meriti e se encontra em plena atividade. Segundo Sobreira, atual Presidente da instituição, ela já é considerada a nona em todo o mundo a congregar os descendentes dos judeus convertidos à força em 1492, na Espanha e, em 1497, em Portugal.
Foram necessários mais de quinhentos anos para desfazer os equívocos de uma tresloucada rainha que se orgulhava, dentre outras esquisitices, de nunca ter escovado os dentes. E, também, de seu confessor, o ensandecido torturador D. Tomás de Torquemada, um frade dominicano que implantou no velho mundo os desmandos da autodenominada Santa Inquisição, de triste memória. Além dos judeus, as perseguições incluíram muçulmanos e outros grupos sociais, provocando a morte de milhares de inocentes e um considerável atraso no progresso dos países e regiões onde exerceu sua nefanda influência. Por sorte, seu legado pertence ao passado, mas suas consequências negativas ainda se fazem sentir até os dias atuais, em setores, felizmente minoritários, da sociedade.
Foto: Sinagoga Shaarei Shalom
Parabéns pelo seu artigo, Nelson. Relembrar as ações do saudoso Augusto, z”l, ainda dá me causa um aperto no coração, misto de saudades, reconhecimento e agradecimento por tudo que ele fez pelos descendentes do bnei anussim.
Agora, cabe a nós, prosseguir no caminho por ele iniciado com o mesmo cuidado, dedicação e coragem.
Oi Marcelo. A foto que ilustra o texto é bastante representativa da diversidade predominante entre os Anussim. Eu estive com o Augusto na véspera do seu falecimento, no Hospital dos Veteranos de Miami. Ele alternava momentos de lucidez e de sonolência. Fez questão de afirmar que não queria ser entubado. Poucos minutos antes do desenlace o Rabino do Templo Moses chegou com duas crianças, seus filhos, que cantaram canções em hebraico para animá-lo. Foi um momento de tristeza e emoção. Na manhã seguinte recebi a notícia de seu falecimento. Soube que ele foi sepultado, como judeu, no Cemitério dos Veteranos, como era sua intenção.
Ótimo texto, Nelson. Didático e apaixonante. Abraços.