Novos horizontes
Por Nelson Menda
Os seis longos anos que passei em Santa Maria, Rio Grande do Sul, quando cursei Medicina, foram, seguramente, os mais penosos da minha vida. Mudar de uma cidade maior e cheia de atrativos para uma menor representou um enorme sacrifício em termos de qualidade de vida.
Reconheço que Santa Maria não tem nenhuma culpa e que teria sido mais acertado realizar o vestibular para a UFRGS, com boas chances de ter sido aprovado, pois estava bastante preparado. O problema era controlar a ansiedade, comum a todos os vestibulandos e a vontade de poder me sentir mais independente em relação aos meus pais.
Sofri bastante com a mudança para uma cidade sem grandes atrativos, amigos e parentes. Acabei forjando um grupo de novos amigos com quem discutir e conversar na Primeira Quadra, o point onde uma parcela da juventude de Santa Maria costumava se encontrar para paquerar e fofocar.
É importante esclarecer que cresci em uma família que cultuava música. Uma das minhas irmãs estudava e tocava piano, por sinal bastante bem. Além disso, dispúnhamos, em nossa casa, em Porto Alegre, de um piano-pianola, em que, durante a infância, fazia questão de pedalar ao mesmo tempo em que escutava peças musicais conhecidas. Para quem não teve oportunidade de conhecer uma pianola, trata-se de um conjunto de acessórios mecânicos e acústicos acoplados a um piano que permite reproduzir com fidelidade os sons desse instrumento a partir do movimento ritmado dos pedais. Esses pedais geram um fluxo de ar que, ao atravessar os furos existentes em rolos de papel que ficam girando de forma contínua, acionam as teclas do piano, reproduzindo as notas musicais das diferentes peças do repertório. Aquela atividade permitia, além da prática de exercícios, que eu me sentisse um autêntico virtuose, ao reproduzir no instrumento as diferentes composições musicais que compunham nossa coleção de, digamos assim, “partituras”. Até hoje recordo da introdução do “Barbeiro de Sevilha”, minha peça favorita.
Meu pai tinha estudado violino na Turquia e eu próprio passei oito longos anos tentando extrair alguns acordes das suas quatro cordas sem, no entanto, conseguir. A culpa não era exclusivamente minha, mas também do instrumento, que tinha um defeito de fabricação. Alguns anos depois, já em Miami, levei o violino para um luthier examinar e ele conseguiu identificar a causa do problema, relacionada à falta de adaptação das cravelhas. Resolvido o problema, pude constatar que o violino, bastante antigo e de fabricação alemã, era de muito boa qualidade, mas aí já era tarde para tentar recomeçar. Doei o instrumento para meu neto mais velho, que prefere passar horas no computador matando zumbis do que manejando o arco para tentar extrair algum som do instrumento.
Essas aulas de violino serviram para educar meu ouvido e identificar os acordes dos diferentes instrumentos, que costumava assistir no Theatro São Pedro, quando a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, a OSPA, dirigida pelo Maestro Pablo Komlos, um judeu húngaro, se apresentava. Uma das vantagens do Theatro São Pedro, assim mesmo, com H, além da beleza arquitetônica de suas linhas e acústica perfeita era sua localização, na Praça da Matriz. Para quem residia na Cidade Baixa, bastava subir, a pé, a íngreme lomba (ladeira) da Rua Espírito Santo, ao lado da Catedral Metropolitana e atravessar a praça, com seus dragões de bronze e floridos jacarandás.
Ao lado do teatro existia uma concha acústica em espaço aberto onde as bandas de música costumavam se apresentar. Era o Auditório Araújo Viana, que depois se transferiu para o Parque da Redenção. O ponto alto da temporada musical desse auditório eram as performances da 1812, de Tchaikovsky, que celebrava a vitória russa contra os exércitos de Napoleão onde, ao final, eram detonados ruidosos tiros de canhão. A Brigada Militar costumava apoiar a parte bélica dessa famosa peça musical, algumas vezes exagerando na quantidade e intensidade dos disparos. Além dos canhões, costumava incluir tiros de metralhadora, para alegria do público, que fazia questão de assistir, mais pelo ruidoso tiroteio do que pelos acordes musicais propriamente ditos. Era possível identificar, ao final da batalha, o hino da França, a Marseillaise e um outro, provavelmente da Rússia Imperial, em um combate simulado em que cada melodia procurava se superpor à outra, até à apoteose final, com a vitória dos exércitos russos.
Foi essa Porto Alegre exuberante e cheia de vida que troquei por uma Santa Maria provinciana e sem grandes atrativos naturais. Em Porto Alegre dispúnhamos do Guaíba, um rio tão vasto que mais parecia um mar, ao passo que Santa Maria não tinha nenhum manancial de água doce, somente o Vacacaí Mirim, praticamente um filete d’água. No verão, fazia um calor infernal, geralmente acompanhado por um vento quente, chamado de Norte, que soprava ininterruptamente por três dias e três noites e só parava quando começasse a chover, geralmente por um mês inteiro. Quando a chuva terminava chegava o frio.
O verão em Porto Alegre também não era lá muito agradável, por causa do calor associado à umidade, mas pelo menos podíamos contar com os banhos de rio ou, para quem dispusesse de carro, das praias oceânicas. Com exceção de Torres, no Norte do Estado, as demais não tinham muitos atrativos, por causa da água fria e dos fortes ventos que sopravam desde a Patagônia.
Foi essa Porto Alegre, batizada de Leal e Valerosa por seus fundadores, que troquei pela pequena e provinciana Santa Maria naquele longínquo 1961. A cidade em que iria passar os próximos seis anos já contava com um pequeno Centro Cultural, na Praça Saldanha Marinho, ao lado da redação do jornal A Razão, dirigido pelo combativo Clarimundo Flores. A transição da sofisticada Porto Alegre para a provinciana e conservadora Santa Maria, cujas únicas qualidades eram sediar importantes guarnições militares, além de abrigar o principal centro ferroviário do estado, foi um autêntico baque. Porto Alegre contava com excelentes salas teatrais e cinematográficas, ao passo que Santa Maria dispunha de apenas três cinemas, todos de um mesmo proprietário. Além de passar filmes velhos, a mesma película era projetada, em sequência, nessas três salas. A televisão não tinha chegado a Santa Maria e palestras e eventos culturais não aconteciam com muita frequência.
A situação política do país naquele ano não era muito distinta da atual, pois havia uma efervescência em relação à posse do Vice-Presidente, João Goulart, após a renúncia do destrambelhado Jânio Quadros, que havia sido eleito com a promessa de “varrer a sujeira” do país. Para onde? Provavelmente para debaixo do tapete. O que trazia um certo ânimo às discussões políticas era a presença de Leonel Brizola, que ocupava uma cadeia de rádio, uma vez por semana, onde defendia seus pontos de vista. Brizola era venerado pelos petebistas, que poderiam ser considerados de centro-esquerda e odiado pelos pessedistas e udenistas, respectivamente de centro e direita.
Santa Maria, como qualquer centro universitário que se preze, deveria ser um polo de discussões e debates, especialmente por contar com jovens em busca de seus próprios horizontes. Acho que os dirigentes da universidade não se deram conta disso pois, ao invés de estimular as discussões de temas de interesse dos estudantes, promoviam o dedo-durismo entre professores, alunos e funcionários. É grotesco como, sessenta anos depois, as mesmas posições radicais voltem a imperar no país, como se as pessoas não tivessem aprendido nada com a própria história.
Apesar do marasmo cultural santamariense quando comparado à agitação de Porto Alegre, consegui forjar um pequeno e seleto grupo de amigos e amigas que cultivei por um bom tempo. Uma dessas amigas, judia, fez questão que eu conhecesse a única sinagoga da cidade, bastante peculiar, pois era construída em madeira e obedecia aos padrões arquitetônicos dos templos israelitas da velha Rússia.
Para não sucumbir ao tédio nos seis anos em que penei na Santa Maria da Boca do Monte, meu colete salva-vidas era a esperança de que, findo aquele interminável período de sofrimento, um outro horizonte me aguardaria após a conclusão da faculdade, em um lugar mágico chamado Rio de Janeiro. Ao invés de, pura e simplesmente, me contentar no retorno a Porto Alegre, o que já seria um excelente prêmio consolação pelos seis anos de vacas, não digo magras, mas medíocres, que precisei suportar no exílio santamariense, um pote de ouro me aguardava na outra extremidade do arco-íris.
Antes de empreender a viagem salvadora ao Rio precisei passar um ano inteiro em Porto Alegre, para organizar a situação financeira da família, que estava em frangalhos. Meu pai teve o mérito de erguer, por seu próprio esforço, um pequeno império econômico e, desculpem a sinceridade, o demérito de não preparar ninguém para administrá-lo quando viesse a faltar. Minha mãe, influenciada por amigas e conhecidas de viés espiritualista, achava que usufruir uma situação econômica confortável era algo que não agradava aos céus e que o correto seria levar uma vida monástica, praticando a caridade. Passei o ano todo de 1967 na capital gaúcha, reunido com um excelente advogado, que me orientou a respeito da maneira correta de administrar o patrimônio imobiliário da família.
Quando, finalmente, pude embarcar para o Rio com um fusquinha tinindo de novo na companhia da minha querida Tia Sara – Sarina para a família – deixei os negócios da família tinindo. Adiantou? Nadica de nada, pois os negócios retornaram à fase anterior, qual aquele boneco teimoso que voltava a ficar em pé sempre que se tentava incliná-lo. Minha mãe não foi talhada para administrar negócios, mas para praticar a caridade, fazer o bem. Por sorte contou com um esposo que lhe propiciou recursos para exercer esse hobby, o que fez durante toda sua longa vida. Reconheço que ajudou muitas pessoas a ascender pessoal e profissionalmente e outras tantas que se aproveitaram da situação para levar vantagem.
A respeito da ida de carro até o Rio, lembro que minha querida Tia Sarina, que adorava viajar, pediu para ir junto, de carona. Preparou um grande estoque de borrecas, aqueles deliciosos pasteizinhos de queijo e semente de gergelim em que os sefaradis são craques, além de um barrilzinho de limonada caseira. Foram dois dias inteiros de viagem regados a borrecas, limonada e muito papo, até a revelação surpreendente de que minha querida tia, esposa dedicada e mãe exemplar de seis filhos, era uma pessoa viciada, segundo suas próprias palavras. Foi preciso que o papo corresse solto até que, pela livre associação de ideias, ela revelasse o que considerava seu pecado maior. Ela já havia tentado de tudo, mas não conseguia se libertar daquilo que considerava uma falha imperdoável de caráter, o tal vício que a atormentava. Custou a revelar o terrível segredo, o que só conseguiu no segundo dia da viagem, quando estávamos cruzando o Estado do Paraná. Todos os dias, a uma certa hora da tarde, ela sentia um desejo irresistível de tomar uma… Pepsi-Cola! Não podia ser Coca-Cola, Crush ou Grapette, tinha de ser Pepsi-Cola. Revelado o segredo e livre da sensação de culpa, assumi meu papel de sobrinho-confessor e assegurei que aquele pecadilho era por demais inocente e que ela podia se sentir liberta da sensação de estar cometendo alguma transgressão. Foi uma mitzvá (benção em hebraico) livrá-la do complexo de culpa.
Na chegada ao Rio, fui levá-la a um encontro de senhoras católicas, onde suas amigas da igreja tinham reservado um local para se hospedar. Mas por que uma igreja e não uma sinagoga? Já comentei que minha família paterna, sefaradi, sempre se relacionou bem com pessoas de outras religiões. Tia Sarina fazia parte de um grupo de senhoras da Floresta, bairro onde residia, que vivia excursionando pelo país visitando paróquias católicas, onde se hospedavam. Devia ser um programa de índio, especialmente para um não católico, mas acho que ela curtia o papo com as amigas, que deviam ser vizinhas da sua residência ou fregueses da loja de propriedade da família em que trabalhava.
Na chegada ao Rio tivemos de superar um pequeno problema: a travessia, a pé, da Av. Presidente Vargas. Tia Sarina tinha muito medo dos carros e, na hora de atravessar, ficava indecisa entre ir e não ir. Lembrei de uma prima de Istambul, na Turquia, que também morria de medo de atravessar qualquer rua. Aquele temor deveria ser atávico, de origem familiar, pois na Lule Burgás de onde meus avós paternos saíram, em 1925, não existiam carros, só carroças. Tanto que, quando algum forasteiro, motorizado, entrasse no vilarejo, as pessoas saíam às ruas, exultantes, a gritar a plenos pulmões: Paris, Paris, Paris!
A muito custo conseguimos atravessar a Av. Presidente Vargas, onde a deixei, e saí a explorar meus futuros domínios, em Ipanema. Precisava encontrar um local agradável para residir e um hospital para estagiar. Já dispunha de alguns contatos familiares e profissionais, que foram de grande utilidade. O local agradável foi fácil de encontrar, apesar de caro, pois o preço dos imóveis no Rio era muitíssimo mais elevado do que em Porto Alegre. O Túnel Rebouças estava acabando de ser perfurado e a ligação entre as Zonas Norte e Sul era realizada de forma ainda precária. Quando percorri, de carro, a orla da Lagoa, decidi que seria ali que iria morar, o que acabei conseguindo concretizar algum tempo depois. Tive a felicidade de encontrar um simpático prédio de três andares, de frente para a Lagoa e com vista para o Cristo, onde acabei residindo por várias décadas.
Quanto ao estágio hospitalar, comecei no Pedro Ernesto, em Vila Isabel e acabei no staff do Serviço de Ortopedia do Hospital de Ipanema, onde permaneci até me aposentar. Analisando assim, à distância, parece tudo muito fácil, mas cada uma dessas etapas representou uma verdadeira corrida de obstáculos, onde pude contar com o apoio de amigos e amigas que fui angariando ao longo da vida – e aos quais só tenho que agradecer.
Dentre esses amigos, um deles, Sr. Noé Augusto Gouveia, se transformou em um verdadeiro pai adotivo, o que permitiu que eu fosse contratado, em pleno AI-5, onde ninguém conseguia ser admitido, para o staff do Serviço de Ortopedia do Hospital de Ipanema, uma instituição primorosa à época. Como a memória tem vontade própria e teima em mesclar acontecimentos passados e recentes, volta e meia me flagro divagando, em papos imaginários, com esses amigos e amigas que ajudaram bastante minha trajetória pessoal e profissional e acabaram constituindo minha segunda família. Até hoje conto com um time de afilhados e afilhadas que procuro orientar com minha própria experiência pessoal, como forma de garantir o processo de continuidade da vida.
O saudoso Fernando Chaves, que me orientou a seguir a especialidade de Traumato-ortopedia, assegurava que as pessoas deveriam fazer o bem até mesmo por segundas intenções, pois ele sempre retornava, como um boomerang, a quem o praticava. Fernando faleceu ainda jovem, em um acidente de carro e a maneira que encontramos para homenagear sua memória foi batizar minha filha caçula com seu nome. E ela fez jus à escolha, pois sempre foi uma pessoa extremamente dedicada aos estudos e à Farmácia, carreira profissional que escolheu e que exerce com extrema competência.
Em relação às minhas filhas, só tenho elogios, pois tanto ela quanto a mais velha, Ana Maria, sempre se destacaram nos bancos escolares e nos demais cursos que realizaram e ministraram. Tenho seguido essa sábia orientação de procurar fazer o bem. Não me arrependo e aconselho os leitores a fazer o mesmo pois, como assegurava outro querido amigo que já se foi, Adolfo Kischinevsky, quando se faz a coisa certa “não tem erro”. Sempre que possível procurei optar, em cada uma das encruzilhadas com que me deparei na vida, pelo caminho que me pareceu correto. Aprendi nos livros do meu guru de marketing, All Ries, que só existe uma opção acertada a cada tomada de decisão, pois todas as demais vão dar com os burros n’água, como assegura um sábio ditado popular. Me interessei pelo marketing quando decidi me aventurar pela área empresarial, ao lançar um produto farmacêutico à base de cálcio. Por sorte fui bem sucedido, pois tive a felicidade de encontrar uma sócia, Angela Neves, que supria minha deficiência em cálculos numéricos, em que sempre fui de uma nulidade absoluta, mas isso já é assunto para um próximo Blog.
É importante reconhecer que não somos obrigados a acertar sempre, pois a vida é uma espécie de colcha de retalhos composta por decisões corretas e equivocadas. A sabedoria está em reconhecer os erros, engatar a ré e recomeçar a trajetória rumo ao que nos parece mais acertado. Errar é humano, mas persistir no erro não faz o menor sentido.
Foto: Universidade Federal de Santa Maria
Poxa, Nelson! Obrigada pela menção ao meu nome! 🙂
Bj.
Angela
Sua narrativa está deliciosa. Quando concluí meu curso de oficial do exército, no CPOR de Porto Alegre, fui designado em Janeiro de 1965 para fazer estágio na cidade de Santa Maria! Como não tinha nenhum parente nem conhecido na cidade, senti muito a mudança. Além da monótona rotina do quartel em tempos de paz, a cidade não oferecia nada para um forasteiro. As pessoas se ocupavam com festas em família e clubes, mas quem não tinha família, ficava jogado. Bem , passou e hoje o Exército Brasileiro conta com mais um brilhante oficial da reserva.
Oi, Feliciano. Em 1965 eu estava morando em Santa Maria. Se vc frequentasse a Primeira Quadra, na Dr. Bozano, certamente teríamos nos encontrado. Era o único local da cidade que reunia o pessoal jovem. Santa Maria, para quem provinha do interior do estado, provavelmente tinha seus encantos. Para nós, todavia, porto-alegrenses, era um lugar sem grandes atrativos.
Adorável! Viajar no tempo na tua companhia é demasiado interessante e divertido!
Como sempre inteligente, sábio e espirituoso!
Parabéns Nelson!
Saudades.