Meus oito anos
Por Nelson Menda
“Ai que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais” (Casimiro de Abreu – Lisboa, 1859)
Na contramão dos versos do poeta, nunca consegui nutrir qualquer sentimento de nostalgia pela minha infância, pois tudo o que almejava naquela fase da vida era crescer, virar logo adulto, trabalhar, ganhar meu dinheiro e ser dono do próprio nariz.
Quando prestei exame de admissão ao ginásio, para ingressar em uma tradicional escola particular de Porto Alegre, após ter sorteado o “ponto” recebi a incumbência de ler e explicar o que o autor de “Meus Oito Anos”, cujos versos abrem o presente texto, quis expressar em sua obra. Como era meu primeiro exame oral, julguei que deveria memorizar toda a poesia e, suando em bicas, no fundo da sala, esperei que me chamassem para tentar repeti-la, tim tim por tim tim, à professora. Ao começar a declamar ela me interrompeu e tranquilizou, afirmando que não teria sido preciso decorar, apenas expor a mensagem que o poeta quis transmitir em seus versos. Não havia o que explicar, pois o texto de Casimiro de Abreu era cristalino e, pelo jeito, sua infância deve ter sido um verdadeiro mar de rosas.
Passei nessa e na maioria das provas que tive de enfrentar ao longo da vida, mas os quatro intermináveis anos que se seguiram ao exame de admissão ao ginásio foram, seguramente, os piores da minha vida. Depois de dois anos de Jardim de Infância e seis de Primário em um Grupo Escolar público de excelente padrão, fui matriculado em uma escola particular mais reconhecida pela rígida disciplina do que pela qualidade do ensino. Além do prédio do colégio, bastante antigo e desprovido de qualquer atrativo, o método de ensino era completamente arcaico, inspirado na tradicional escola germânica e baseado na obediência cega aos professores e bedéis. Passei os quatro anos do ginásio calado, sem ter formulado uma única pergunta aos professores, sendo classificado, exatamente por isso, como um aluno bem comportado. As mesas e os bancos eram duplos, de madeira e, para piorar, meu companheiro de carteira passava a aula toda fungando. De tempos em tempos uma meleca amarela ameaçava desandar narina abaixo, contida no último segundo por uma inspiração forçada, em um angustiante e contínuo sobe-desce.
Minha iídishe-mamma sempre fez questão que eu portasse um lenço limpo, caso precisasse assoar o nariz, pois o clima de Porto Alegre, especialmente nos meses de inverno, era inclemente. Espirrar e tossir, além de sorver o chimarrão, eram partes integrantes da rotina diária dos gaúchos. Voltando à meleca, seria apenas uma questão de tempo para que ela fosse aumentando de volume e acabasse escorrendo, camisa abaixo, antes que o colega, meio que implorando, apelasse, em voz súplice: “me empresta um lenço”? Eu já estava a postos, com o lenço limpo praticamente à mão, pois além de oferecer fazia questão de assegurar que não seria preciso devolvê-lo. Não por espírito de solidariedade ou companheirismo, mas pela repugnância em ter de levar para casa ranho alheio, como as secreções nasais eram denominadas no meu saudoso Rio Grande do Sul. Imaginem ter de suportar uma situação dessas por quatro longos anos, precisando estar atento, simultaneamente, ao professor, ao livro ou quadro negro e ao nariz do vizinho.
Poderia aproveitar para mencionar, nesta ocasião, a respeito da inutilidade desses mesmos quatro anos em que precisei estudar latim, língua morta que só serviu, alguns anos depois, para salvar minha vida em uma situação de risco, mas essa já é uma outra história.
Mas, porém, todavia, contudo, nem tudo foram espinhos naquela decantada fase risonha e franca da vida. Dentre as poucas lembranças agradáveis que conservo da infância estão as visitas às praças, que costumávamos chamar, carinhosamente, de pracinhas. Não que fossem pequenas, pois algumas delas, como o Parque da Redenção, apesar de enorme, continuava a ser chamado, pelos meus primos, de pracinha – e não me perguntem a razão, que não vou saber explicar. Não havia muita variedade de brinquedos nas pracinhas da época, apenas os balanços, as gangorras e os escorregadores. A única exceção era a Praça da Matriz, no centro da cidade, que não dispunha de balanços ou gangorras mas, em compensação, ostentava enormes dragões de bronze em que cavalgávamos segurando, desajeitadamente, nas suas enormes asas. Já os escorregadores, conhecidos no Rio como escorregas, acabaram proibidos no Sul porque um psicopata, na cidade de Pelotas, teria escondido uma lâmina de barbear na superfície onde as crianças deslizavam e provocado ferimentos em várias delas. Verdadeira ou não, essa história se espalhou rapidamente e, pelo sim, pelo não, os escorregas caíram em desuso, o que só fez aumentar o prestígio dos balanços e das gangorras, inocentes brinquedos que quase não ofereciam risco.
Se bem que os balanços também podiam provocar pequenos acidentes, especialmente para os mais ousados, que exageravam na intensidade do vai e vem e acabavam caindo, ou naqueles desavisados que passavam pela parte de trás do brinquedo na hora exata em que tinha alguém se balançando. Imprudência que poderia custar uma baita traulitada na cabeça que, muitas vezes, obrigava a uma visita ao Pronto Socorro para que o corte no couro cabeludo, que costumava sangrar bastante, fosse suturado.
A infância e a adolescência ficaram para trás, já não sinto falta dos brinquedos das praças e parques e as crianças de hoje contam com outras formas de diversão no fértil e criativo campo da eletrônica. No entanto, ao se analisar o deslocamento pendular dos balanços é possível traçar um paralelo entre seus ritmados movimentos e o que ocorre no mundo real. A vida nada mais é do que uma lenta e inexorável evolução no tempo, ou seja, uma espécie de balanço que se move para a frente e para trás, alternando bons e maus momentos, até parar completamente, a menos que alguém volte a empurrá-lo. Já a velha gangorra, por outro lado, é um excelente balizador para avaliar as oscilações cíclicas para cima e para baixo que ocorrem nas diferentes atividades humanas, seja nos preços dos bens e serviços, na política e até mesmo, do ponto de vista prático, na cotação das diferentes moedas.
Tanto os balanços quanto as gangorras não têm vida própria. Para se movimentar, precisam ser estimulados, exatamente como acontece nas atividades humanas. Se conseguirmos entender os mecanismos que regem esses movimentos, aprender a controlar os impulsos e avaliar o momento exato de utilizá-los podemos não só concretizar nossos projetos como também aprender a viver em harmonia conosco próprios. Só que, a exemplo da gangorra, em que, para uma das extremidades subir, é preciso que a outra baixe, o mesmo acontece na vida real. A sabedoria está em reconhecer, com inteligência e cabeça fria, o momento exato de entrar ou de sair de qualquer empreitada.
Para finalizar, é importante reconhecer que não dá para ficar sempre no topo, mas que, muitas vezes, um erro pode representar o aprendizado que irá ajudar a entender o que se passou, evitar repeti-lo e deixar que a gangorra ascenda novamente. O pulo do gato para se manter no topo pelo maior tempo possível é procurar entender o que controla esse sobe-desce contínuo, evitando tomar decisões impulsivas e aceitando com humildade as ocasiões em que a gangorra baixa, pois logo, logo, ela poderá subir novamente.
Isso foi o que a vida me ensinou nessas bem vividas sete décadas, esperando que esses ensinamentos tenham sido de utilidade para o leitor.
Oiiii,
adorei a abordagem, divertida e inteligente. Faz muito sentido a comparação dos brinquedos com o curso da vida. Confesso que nunca havia pensado nisto!
Bjs
Oi, Vani. Só deixei de mencionar que os balanços, geralmente, precisam de um empurrão inicial, o que poderia ser comparado à educação e ao apoio recebido dos pais. As crianças mais espertas acabam descobrindo que é possível, através de movimentos do próprio corpo, mantê-los em permanente vai vem, exatamente como acontece na vida de todos nós. Obrigado pelo comentário. Bjs. Nelson