Memórias
Por Nelson Menda
É impressionante como determinados fatos ocorrem – e chegam a se repetir – no decorrer de nossa existência. Felizmente, não tenho dificuldades para conciliar o sono, se bem que procuro enganá-lo, postergando a ida para a cama quando já estou pregado. Sonhar, para mim, faz parte da rotina diária e, geralmente, durante alguns poucos minutos, pela manhã, continuo em um estado semi-letárgico, meio dormindo e meio acordando.
Meu professor de Psiquiatria na Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, de quem guardo uma excelente lembrança, ao ministrar aula sobre a interpretação freudiana dos sonhos, aconselhava seus alunos a manter na mesa de cabeceira uma folha de papel e caneta. Como os sonhos se esvaem com rapidez, ao anotá-los seria possível preservá-los por mais tempo na memória.
Observei que alguns sonhos se perpetuam, por conta própria, no lado consciente do pensamento, sem a necessidade de registrá-los, como recomendava meu querido Professor Denizard. Ele me considerou um dos bons alunos na disciplina de Psiquiatria e, ao me entregar a prova, no final do semestre, onde tirei nota máxima, indagou, à queima-roupa, “futuro colega”? Respondi, de forma espontânea e deseducada, “Deus me livre”, pois não tinha a menor intenção de seguir a especialidade de Psiquiatria ou me dedicar à Psicanálise. Segui um rumo diametralmente oposto, ao optar pela Traumato-Ortopedia, especialidade que exerci por décadas, decisão da qual não me arrependo.
Já que toquei no tema dos sonhos, vou relatar um fato acontecido, que estava trancafiado na enigmática caixa-forte da memória e retornou à lembrança há poucos dias, assim que despertei. Eu deveria estar com 8 ou 9 anos de idade, cursando o Primário no Grupo Escolar Paula Soares, em Porto Alegre. O ano deveria ser o de 1953. A professora nos avisou, na véspera, de que o então Presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas, estaria visitando a capital gaúcha e que deveria ser saudado no trajeto entre o Aeroporto e o Palácio Piratini, na Praça da Matriz, por alunos de todas as escolas públicas da cidade. Além dos uniformes brancos, que deveriam estar impecavelmente limpos e passados, cada criança recebeu uma bandeirinha do Brasil para saudar o primeiro mandatário na passagem da comitiva presidencial. Minha turma ficou postada, horas a fio, na calçada da Praça do Portão, quase ao lado da tradicional Confeitaria Rocco, pois a delegação oficial, a partir desse ponto, seguiria pela Duque de Caxias até o destino final, o imponente Palácio-Sede do governo do estado.
Há um relato da história que revelou ter ocorrido uma troca nos projetos de construção do nosso Palácio, cabendo a Porto Alegre erigir, por engano, o Piratini, utilizando a planta que deveria ser o da sede presidencial do governo chileno. Faz todo sentido, pois o nosso prédio é muito mais imponente do que o que foi erguido na capital do país andino. O Governador do Rio Grande do Sul à época era o General Ernesto Dornelles, não por coincidência sobrinho de Vargas. Um dos filhos do Governador era meu colega de turma no Paula Soares e isso era motivo de orgulho para todos nós, especialmente a Diretora da escola, Dona Marina, que comandava o estabelecimento com mão firme. Era ela quem badalava um pesado e sonoro sino na hora das aulas começarem e terminarem. Minha mãe era amiga de Dona Marina, que tinha sido sua professora na mesma instituição alguns anos antes. Sempre fui considerado um aluno bem comportado e nunca fui chamado à presença da Diretora, o que deveria se constituir em uma experiência bastante desagradável.
Estudar ou lecionar no Paula Soares era um privilégio pois, além da localização junto ao poder executivo estadual, a escola contava com a nata do magistério Porto-Alegrense. Daí o fato do próprio filho do Governador – e sobrinho-neto do Presidente da República – estudar no estabelecimento. O Piratini era a sede do executivo estadual e residência oficial do governador e sua família. Havia uma escadaria que ligava os fundos do Palácio à entrada do Paula Soares. Para os demais alunos, era preciso subir uma ladeira, que os gaúchos denominavam “lomba”, da Rua General Auto. Nunca me dei ao trabalho de saber quem teria sido esse importante general, nem se o Auto se referia ao seu real sobrenome ou a algum veículo que o mesmo tivesse utilizado. O fato é que a rua de acesso ao Grupo Escolar era tão íngreme que poucos motoristas se aventuravam em tentar subi-la com os precários automóveis da época. Subíamos essa ladeira a pé, chegando exaustos e suados ao imponente pórtico da escola.
Alguns anos depois, já residindo no Rio, fiz uma visita nostálgica ao Paula Soares, quando me dei conta de que o prédio não era tão imponente quanto a imagem conservada na memória. Voltando ao relógio do tempo e ao referido sonho, no lusco-fusco antes de acordar, já em 2022, acabei me indagando a respeito da real intenção daquela visita presidencial, um ano antes do trágico desaparecimento de Getúlio. O que teria levado o Presidente a visitar a capital gaúcha quando o país se debatia em uma terrível crise institucional? Somente agora, quase setenta anos depois daquela ocasião, me dei conta de que não existiam populares naquela saudação orquestrada e convocada pelas autoridades públicas gaúchas. Não me recordo de nenhuma outra homenagem do gênero durante o tempo em que cursei o primário.
Em agosto de 1954, um ano depois daquela visita presidencial ao estado, com o suicídio de Vargas, Porto Alegre foi sacudida por violentas manifestações de rua, além do incêndio provocado no prédio das Rádios Farroupilha e Difusora, que pertenciam a Assis Chateaubriand e que promovia ferrenha oposição ao governo federal. Naquela mesma ocasião, o escritório onde funcionava o Consulado Norte-Americano na capital gaúcha foi invadido e vandalizado por uma turba enfurecida. Levei sete décadas para entender a razão de ter permanecido, por horas a fio, em pé, agitando uma bandeirinha do Brasil para um carro antigo e aberto que passou pelas crianças e suas professoras sem, sequer, se deter. Algo muito grave deveria estar ameaçando a estabilidade do governo federal e Getúlio, provavelmente, viajou até Porto Alegre para conferir o grau de solidariedade com que poderia contar com as bases políticas e militares de seu estado natal. Mais do que o possível apoio de seu sobrinho-governador ou das milhares de inocentes crianças agitando bandeirinhas, o que desarmou um possível golpe de estado deve ter sido a bala com que tirou a própria vida, no Palácio do Catete, no Rio, na noite de 24 de agosto de 1954.
Se as histórias, realmente, se repetem, seja como realidade ou farsa, quantos anos teremos de aguardar para poder enxergar com nitidez o que está ocorrendo atualmente em Pindorama?
Foto: Ewerton moreira, CC BY-SA 3.0 (Wikimedia Commons). Fachada do Colégio Estadual Paula Soares
Belissimo relato caro Menda. Como vc sabe sou um saudosista. sobre o relato da troca de projetos, por aqui dizem que a nossa Casa da Moeda na Praça da Republica tambem foi construida segundo o projeto do Chile… esse projeto está viajando muito… dizem que por isso o palacio do chile se chama Palacio de La Moneda. Gostei. que venham novos relatos. Abração
Amigo Israel. Vc., como sempre, além de leitor fiel do Blog, emite opiniões de grande valor. Ao contrário do Palácio de La Moneda, no Chile, incendiado durante a deposição de Allende, o Piratini e a Casa da Moeda são exemplos concretos de que os brasileiros, apesar dos pesares, são mais cordatos. Já houve uma ordem, em episódio posterior ao relatado no Blog, para que a gloriosa FAB bombardeasse o Piratini. Relata a história de que os aviões chegaram a alçar vôo, mas os pilotos se recusaram a lançar suas bombas sobre o icônico prédio. Graças a esse ato de insubodinação foi possível perservar uma das mais bonitas construções de Porto Alegre.
Nelson, em 1952, eu estava fazendo o serviço militar como cabo e fui convocado por minha altura a atuar como PM na guarda de proteção ao Presidente Vargas, que passou pela Av. João Pessoa, onde
ali eu fiquei com um fuzil armado de munição e com ordem para disparar se fosse o caso, na data por ti citada eu já tinha sido dispensado como sargento da reserva e não lembro de Vargas em 1953, no Colégio P. Soares estudaram dois irmãos meus, eu fiz o primário no G. E. Duque de Caxias que ficava na Rua da Azenha, próximo de onde viestes a residir. Aprecio muito tuas crônicas-nostalgias, gande abraço, Bernardo Falk
Oi, Bernardo. Sem querer, participamos como coadjuvantes de momentos tensos da história do Brasil. Será que valeu o risco?
Nelson:
Eu também lembro do Getúlio. Ele quebrou o domínio da liderança brasileira do café com leite, S Paulo e Minas Gerais. Além de ser populista, cercou os empregados de leis favoráveis o que se reflete até hoje numa das causas do desemprego e miséria. Sim, para poderes contratar pessoas tu tens que em primeiro lugar ter a proteção de uma boa banca de advogados.
Eu na época não tinha maturidade para julgar o governo. Em 1954 eu tinha 12 anos. Sim eu já frequentava o Dror mas para Tiulim (passeios) e recreação.
Mais tarde eu tomei conhecimento que o Getúlio foi um grande fã do Hitler. Ele só se bandeou para o lado dos americanos porque os nazistas afundaram navios brasileiros. Aí ele não pode conter os militares aqui. Teve que declarar guerra ao eixo. Como muito esperto ele obrigou os americanos a financiar a Cia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda. Ele como de família de latifundiários de S. Borja tinha uma cultura nacionalista mas era conservador.
Nossa sorte foi que por outro lado ele nomeou o Osvaldo Aranha que nos ajudou na ONU a apoiar o Estado Judeu. Uma mácula terrível foi a expulsão de Olga Benário para a Alemanha, assim ele puniu o Prestes a quem devia odiar.
Enfim o GEtúlio teve o azar de apoiar seus capangas a fazer uma tocaia na Rua Toneleiros no Rio, para matar o Carlos Lacerda seu inimigo número um. O Gregório Fortunato mirou mal e acertou o Major da Aeronáutica Rubens Vaz, aí de noite ele se suicidou para não ser julgado e talvez preso.
Foi muito comentado este assunto por anos.
Nossa empregada doméstica, a Dona Ana chorou muito naquele 24 de Agosto, coitada. Deus a tenha.
Ela morou conosco por 26 anos.
Assim é a vida, temos que ter sorte não é?
Abraços
Ivo