Herança sefaradi
Por Nelson Menda
Meu sobrenome, Menda, pode ser classificado como uma toponímia, expressão relacionada à região que origina um determinado grupo familiar, mesmo que seus descendentes já não residam mais no local. Menda é um pequeno vilarejo localizado na Galícia espanhola, Província de Pontevedra. Não nasci em Menda, mas em Porto Alegre, em novembro de 1942, tendo sido registrado com o sobrenome nome do qual sempre me orgulhei. Nesse caso, qual seria a origem desse sobrenome tão pouco frequente?
Ao contrário dos Mendes e Mendonças, relativamente comuns entre famílias de origem portuguesa, os Mendas não são muito numerosos. Esse fato ajudou a localizar alguns poucos parentes desgarrados pelo mundo, como na própria Turquia, onde nasceram meu pai, meus tios e tias, meus avós e bisavós e por aí afora, em escala ascendente. Também existem alguns poucos Mendas, que eu saiba, nos Estados Unidos, em Porto Rico e em Israel.
A tradição oral do ramo paterno da minha família sempre fez questão de esclarecer que o sobrenome Menda deriva da expressão “de Menda”, referência à localidade espanhola denominada Menda. Nossos ancestrais descenderiam de três irmãos originários dessa aldeia que, ao migrar da Espanha para o Império Otomano, tiveram seus sobrenomes simplificados, com a retirada da preposição “de”.
Utilizei a expressão migrar, mas a palavra correta seria expulsar pois, como judeus, meus ancestrais, para continuar vivos e não ser obrigados a se converter a outra religião, preferiram perder a casa e a provável pequena propriedade rural em que viviam ao se transferir, praticamente com a roupa do corpo, para a Turquia.
Todavia, só consegui confirmar a existência desse lugarejo chamado Menda ao realizar pesquisa em um exemplar da Enciclopédia Espanhola existente na Biblioteca Pública de Porto Alegre, na Rua do Riachuelo. O verbete Menda esclarecia que se tratava de uma vila na Província de Pontevedra, Galícia, próximo a Dimo e Catoira, o que foi suficiente para confirmar o que vinha sendo repetido geração após geração.
Há alguns anos, em viagem para a Espanha, na companhia da minha filha mais velha, fiz questão de conhecer o vilarejo de Menda, em Pontevedra, Galícia, não muito distante da fronteira com Portugal. Foi difícil encontrá-lo, pois se tratava, na realidade, de uma estreita faixa de terra ao lado de uma montanha onde era possível avistar um tranquilo rebanho de ovelhas a pastar. Daí ter deduzido que nossos parentes, com bastante probabilidade, teriam sido pastores ou comerciantes de lã. Trafegando pela rudimentar estrada que margeava essa montanha foi possível observar a existência de três antigas casas de pedra onde, provavelmente, nossos parentes teriam vivido. Tirei algumas fotos, que inseri no Livro da Família, que minha filha elaborou quando estudava no Colégio Liessin, no Rio.
Durante a visita ao local tive a oportunidade de conversar, em galego, que se parece bastante com o ladino, com alguns moradores do pequeno vilarejo de Menda. Procurei saber se teriam conhecido os proprietários daquelas casas. O máximo que puderam me informar é que os antigos moradores tinham migrado para a Argentina há alguns anos, mas seria pouco provável que soubessem quem teria vivido por ali no século 15.
Sabíamos, por tradição oral passada de geração em geração, que éramos originários da Península Ibérica, até mesmo porque o idioma falado no interior de nossas casas e entoado nas rezas do Kal, como denominávamos nossa sinagoga, era o ladino, uma das variantes do Espanhol. Esse assunto era um dos temas recorrentes dos nossos habituais encontros familiares, geralmente em alguma das muitas efemérides do calendário religioso judaico, que se iniciavam, invariavelmente, ao pôr do sol. Nessas ocasiões, encerradas as rezas e a degustação das komidikas preparadas com esmero pela minha vó em seu fogão a carvão, o assunto fluía para nosso próprio passado espanhol, do qual muito nos orgulhávamos. Apesar de termos sido expulsos, de muitos de nossos ancestrais terem sido perseguidos e mortos pelo obscurantismo religioso clerical, não cultivamos rancor ao país e ao povo espanhol, com os quais sempre nos identificamos. Elegemos não um, mas dois responsáveis principais a quem atribuir a culpa pela expulsão dos judeus da Espanha em 1492: a Princesa Isabel de Castela e seu padre confessor, o famigerado torturador Torquemada.
Uma das características dos sefaradis, como são denominados os judeus originários de Sefarad, nome hebraico para designar a Península Ibérica, é o culto à tradição musical, tanto litúrgica quanto a laica. Minha avó paterna, Mari Menda, cantava o dia todo, em ladino e turco e cresci escutando suas cantigas, com destaque para a melodia Kerida, que inspirou o compositor Giuseppe Verdi a compor a ária Adio del Pasato da ópera Traviata, baseada na obra A Dama das Camélias.
Ao contrário do que, à primeira vista, poderia fazer supor tratar-se de uma canção de amor era, na realidade, uma manifestação de repúdio e desprezo à figura feminina inspiradora do Édito de Expulsão de 1492. Alguém pode achar que os versos “Tu madre, cuando te parió, corazón ella no te dió para amar segundo” ou, ainda, “Adió, Kerida, no kero la vida, me lamargates tu…buxcate otro ardor, por que, para mi, sos muerta” seriam uma ode ao afeto? Isso não é nem nunca deveria ser considerada uma canção de amor, mas sim do mais puro desprezo.
Por sorte, apesar dos percalços e de toda gama de sofrimentos e privações, os judeus expulsos da Espanha conseguiram chegar à Turquia, onde o Sultão Bayazid II os recebeu de braços abertos, afirmando que éramos seus irmãos. Concedeu-lhes o direito de residir, trabalhar e praticar sua fé nos vastos domínios do Império Otomano. Ficaram proibidos, todavia, de andar a cavalo. Só poderiam montar animais menos nobres, como burros e mulas e também de utilizar um vistoso e pontiagudo chapéu, assim como de prestar o serviço militar.
Essa última proibição, na realidade, representou uma verdadeira benção para os judeus, pois os belicosos turcos viviam às turras com seus vizinhos. Esse clima de permanente animosidade perdurou até 1918, quando a Turquia entrou, juntamente com a Alemanha e Itália – e perdeu – a Primeira Guerra Mundial. Portanto, de 1492 a 1918, os judeus que viveram no Império Otomano e constituíam os chamados dhimmis, minoria protegida pelos sultões, juntamente com os cristãos, puderam viver em paz, gerir seus próprios negócios, pagar seus impostos, construir e administrar seus templos e tocar suas vidas. Isso talvez explique o temperamento afável dos sefaradis da Turquia, que viveram 426 anos de paz e tranquilidade, sem o risco de “cair do cavalo”, até mesmo porque estavam proibidos de montá-los.
Mas nem tudo foram rosas nesses séculos de convívio entre judeus e muçulmanos no Império Otomano. Com a deposição dos sultões e a ascensão dos chamados jovens turcos, liderados por Mustafa Kemal Atatürk, mais conhecido como Kemal Pachá, em 1923, os referidos privilégios foram abolidos e a Turquia virou uma república. Antes liberados do serviço militar, os judeus e cristãos dessa nova Turquia teriam de se engajar nas forças armadas do país. Em princípio, tudo bem, se os oficiais do exército turco não tivessem o condenável hábito de sodomizar os jovens recrutas.
Ao lado dessa bizarra prática, o país entrou em uma profunda recessão econômica, fruto da derrota na Primeira Guerra e na demora em incorporar ao país os progressos da era industrial. As mães judias logo se deram conta de que tinha chegado o momento de proteger seus filhos varões, “tirar o time de campo” e migrar para um outro país, preferencialmente ocidental.
A primeira providência foi postergar ao máximo o registro das crianças do sexo masculino, visando retardar a convocação para o serviço militar, aos 16 anos de idade. É bem possível que essa tenha sido uma das razões que levou meus avós paternos, com seis filhos pequenos, quatro dos quais varões e o mais velho deles, meu pai, com 16 anos, tenham sido estimulados a migrar para o Brasil.
Por uma feliz coincidência um dos irmãos do meu avô, o tio Leon, tinha viajado, no início do século passado, para Cuba, então um próspero país. Trabalhou com afinco durante um par de anos e conseguiu amealhar fortuna, provavelmente no comércio. De volta à Turquia, abriu três lojas em Lule Burgás, na Trácia, em sociedade com o irmão, David Menda, meu avô. Com a deposição dos sultões e as reviravoltas na política turca, Leon e David Menda decidiram vender as lojas e dividir o produto entre suas famílias. Tio Leon e seus dois filhos homens, Aron e Vitale, optaram por adquirir uma botika (pequena loja) no Grande Bazar de Istambul, que tive a satisfação de conhecer muitos anos depois, quando visitei o país.
Um outro irmão, David Menda, meu avô, resolveu migrar para o Brasil, a chamado de um familiar, que já tinha vindo e abrasileirado o nome turco Chapat para Salvador. Esse irmão também possuía uma loja, na Praça Daltro Filho, em Porto Alegre, na Cidade Baixa. É interessante como os emigrantes, provavelmente por uma questão de auto proteção, acabam se radicando próximos uns dos outros. Com os sefaradis turcos não foi diferente e a Cidade Baixa foi o bairro escolhido para essa fixação inicial em Porto Alegre. Talvez a facilidade de poder ir e voltar a pé do Centro Hebraico, a “nossa” Sinagoga, durante o Shabat, também tenha sido um fator determinante para essa localização. O fato é que não só nasci como também morei, até os 13 anos, em diferentes endereços da Cidade Baixa.
Vô David tinha sido convidado a ingressar como sócio na loja do irmão, Tio Salvador, em Porto Alegre e esse foi um dos fatores que motivou a vinda da família para o Brasil, em janeiro de 1926. Foi uma longa e cansativa viagem, pois foi preciso pegar um navio de Istambul até Marselha, na França e, de lá, embarcar no Mendoza, que fazia a rota da Europa para a América do Sul. Viajaram na terceira classe, pois era preciso economizar ao máximo para guardar a maior parte das reservas para o investimento na nova sociedade.
O plano era perfeito, só não contaram com um imprevisto bastante desagradável, pois a loja de Porto Alegre estava em situação pré-falimentar. A realidade é que o suado capital trazido da Turquia durou muito pouco tempo e Vô David, à guisa de indenização, recebeu parte dos estoques da massa falida para tentar vender de porta em porta. Foi ajudado pela experiência anterior no comércio e também pela proximidade do ladino com o português, mas foi um período bastante difícil para todos.
O filho mais velho, meu pai, que tinha recebido uma educação primorosa no internato Salesiano onde tinha estudado na Turquia e se preparava para o ingresso na Escola de Ciências Contábeis de Porto Alegre, conseguiu aprender, rapidamente, o português e poder começar a trabalhar como “Guarda-Livros”, como a contabilidade era chamada. Inicialmente, como funcionário de lojas da coletividade sefaradi gaúcha, na Rua da Praia, a principal artéria comercial de Porto Alegre. Em paralelo, ingressou na Faculdade de Economia e conseguiu, pouco a pouco, se firmar como um dos mais requisitados profissionais da cidade.
Com a progressiva melhoria na situação financeira da família e o casamento da filha, Sara, com um comerciante judeu proveniente da Grécia, vô David retornou ao que mais gostava e sabia fazer: trabalhar atrás de um balcão e atender os fregueses com educação e simpatia. O segredo do sucesso no ramo comercial não é apenas saber vender, mas principalmente saber comprar. Enquanto tio Michel e sua esposa, Sara, se desdobravam no balcão da loja, vô David ficou encarregado das compras, no atacado. O Rio Grande do Sul possuía uma forte indústria de calçados concentrada na cidade de Novo Hamburgo, a uma hora de Porto Alegre e era para lá que o Vô David viajava para adquirir produtos que seriam comercializados na Casa Michel, no Passo da Areia.
Ao entardecer das sextas-feiras e durante o dia todo nos sábados, era impossível encontrá-lo atrás do balcão, pois ele era um dos responsáveis pelos serviços religiosos do Centro Hebraico, o Kal, a “nossa sinagoga”, na Rua Fernando Machado, obviamente na Cidade Baixa. Eram vários os responsáveis pela condução das rezas, em Hebraico e Ladino. Mas na hora de tocar o Shofar, o chifre de carneiro ritual, a posição cativa era dele, pois era o único que tinha fôlego para extrair os inconfundíveis sons daquele primitivo e mágico instrumento. Ficávamos orgulhosos ao vê-lo empunhar, do alto da bimá (púlpito) aquele milenar instrumento. É a imagem que conservo na memória, até os dias atuais, de sua incontestável liderança.
Tive a felicidade de contar com uma família recheada de primos e primas com os quais sempre procurei me relacionar. Além disso, aprendi com o ramo paterno da minha própria família, a conviver harmoniosamente com pessoas de diferentes credos e etnias, estabelecendo um valioso rol de amigos e amigas que faço questão de manter até os dias de hoje.
Os sefaradis gaúchos já não residem mais na Cidade Baixa, se bandearam para outros bairros, cidades e até países, mas só posso agradecer pelo permanente bom humor e as lições de convivência pacífica em que fui educado e que fiz questão de transmitir às minhas filhas e netos. Uma das expressões mais utilizadas pelos sefaradis turcos, Mashalá, é uma espécie de benção que costuma figurar ao final de cada frase, como uma forma de agradecimento antecipado a Deus – Alah para os povos orientais – pelas coisas boas que estão por acontecer, obviamente, se Ele quiser.
Apesar da literatura relatar a chegada maciça de refugiados judeus a Istambul, capital do Império Otomano, é provável que grande parte tenha conseguido embarcar nos navios que traziam especiarias (cravo, canela e pimenta) nas embarcações da frota de Doña Grácia Mendes, a “Senhora”, e, depois de desembarcar em Lisboa, viajado, por terra, para Salônica, então pertencente ao Império Otomano, onde não eram perseguidos.
Doña Grácia Mendes, além de albergar e transportar refugiados judeus nas embarcações da sua ampla frota, ainda conseguiu organizar uma rota de estalagens seguras no trajeto entre Lisboa e Salônica. Encontrei diversas listas de registros de habitantes judeus de Salônica e também da Bulgária e de Lule Burgás, na Trácia, com o sobrenome Menda, prova inequívoca de que teriam utilizado essa rota para alcançar a liberdade religiosa.
Por uma feliz coincidência, e em meio dessa insidiosa pandemia, quando não se sabia se haveria uma vacina que pudesse proteger a humanidade desse flagelo, um cientista judeu conseguiu desenvolver um imunizante que tem proporcionado uma esperança para enfrentar – e vencer – a Covid-19. É ele o Dr. Albert Bourlá, natural de Thessalônica, Grécia e um dos criadores da Vacina Moderna, que uma de minhas filhas aplicou para ficar imunizada contra a Covid-19.
O Dr. Bourlá, sobrenome sefaradi encontrado no Brasil, descende daqueles judeus ibéricos que a Princesa Isabel e o famigerado Torquemada tentaram eliminar da face da terra. Suas pesquisas médicas estão sendo consideradas pela comunidade científica internacional “o maior avanço da medicina nos últimos 100 anos”. Ao fazer uma busca no Google, procurando obter mais dados a respeito das diferentes vacinas para aumentar a imunidade das pessoas no enfrentamento do flagelo da Covid, encontrei mais referências anti-vacina do que pró vacina. Sinal inequívoco que a herança maldita de Isabel de Castela, que se orgulhava de nunca ter escovado os dentes, juntamente com seu “padre confessor”, o genocida Torquemada continuam vivas e atuantes.
Foto: Pigmentoazul, CC BY-SA 4.0 (Wikimedia Commons). Grañón – Ermida dos judeus.
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