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Freud

Por Nelson Menda

Viajar para outros países e poder conhecer novos povos e costumes é uma experiência enriquecedora e fascinante. Houve um tempo, antes da pandemia, em que isso era possível, desde que se dispusesse do numerário para a aquisição das passagens aéreas, das diárias dos hotéis, da emissão dos passaportes e a obtenção dos vistos de entrada para os países que se tencionava visitar.

Na realidade, não era tão caro assim, mas há uma fase na vida de todos nós, quando estamos dando os primeiros passos na carreira profissional, em que tudo é mais difícil. O Brasil, por outro lado, atravessou tantas situações de altos e baixos na política e na economia que era preciso aproveitar as poucas janelinhas que se abriam, fazer as malas e partir para a sonhada viagem, geralmente para a Europa ou os Estados Unidos.

Algumas agências de viagem chegavam até a sugerir uma triangular, oferecendo preços promocionais a quem se dispusesse a “dar um pulinho” nos Estados Unidos no retorno de uma viagem à Europa. Os destinos mais cobiçados para os marinheiros de primeira viagem eram Nova Iorque, Paris e Londres. As dicas de passagens e hotéis econômicos, os macetes para se adquirir ingressos a preços promocionais e poder assistir shows considerados imperdíveis, além dos museus a serem visitados, eram fornecidas pelos veteranos, aqueles privilegiados que já tinham ido uma ou mais vezes ao exterior.

Na minha primeira viagem aos Estados Unidos, o que mais me impressionou não foram os gigantescos edifícios de aço e vidro, as grandes lojas de departamentos ou o metrô de Nova Iorque, mas sim a coloração das folhas das árvores, de uma tonalidade de verde distinta da que havia no Brasil.

Subir e descer, a pé, pelas calçadas da Quinta Avenida, observando com atenção as pessoas e os prédios, foi outra atração, pois tudo era novidade. Logo descobri que ficar desperdiçando tempo e dinheiro com compras, como faziam muitos brasileiros, era um desvio total do objetivo, pois havia coisas mais importantes a fazer.

Que coisas? Visitar museus, por exemplo. Em Nova Iorque, o Museu de História Natural, no Central Park, era e ainda é, se estiver aberto, um programa obrigatório. Outros dois museus naquela cidade também despertaram minha atenção. Estou me referindo ao Museu Judaico, instalado em um prédio clássico de uma transversal do Central Park, no East Side e ao Museu da Herança Judaica, em um edifício em forma de pirâmide na ponta sul da Ilha de Manhattan.

Em uma das visitas posteriores à Big Apple, minha atenção foi despertada para os cartazes e banners espalhados pela cidade divulgando uma exposição sobre Sigmund Freud que estaria vindo, pela primeira vez, aos Estados Unidos. Mais do que isso, era uma exibição do consultório real do famoso médico, que havia funcionado por cinquenta anos ininterruptos na Berggasse 19, em Viena. Um dos destaques dessa mostra eram o famoso divã, onde os pacientes, através da livre associação de ideias e seus respectivos desbloqueios eram a chave para expor, depois de uma exaustiva e complexa análise, seus conflitos pessoais. Situações que acabaram dando origem às teorias a respeito do id, do ego, do superego, à divisão da mente humana entre os territórios do consciente e do inconsciente, à interpretação dos sonhos e ao restante da obra do primeiro psicanalista da história.

Além do divã, a sala ostentava a famosa escrivaninha do consultório onde Freud anotava suas observações e redigia suas obras. Por sorte o Museu Judaico, onde a exposição estava sendo realizada, tinha poucos visitantes no dia em que estive por lá e pude me deter, com calma, na observação da sua mesa de trabalho e o ambiente ao redor. Chamou minha atenção a presença, sobre essa mesa e o restante do consultório, de diferentes estatuetas, de diversos tamanhos, representando personagens inteiramente desconhecidas, pelo menos para mim. Vim a saber, posteriormente, que Freud era fascinado por figuras da mitologia, não só Édipo e Electra, da grega, como também Isis, Osíris, Amenophis IV Akhenation, da egípcia, Brihad-Aranyaka Upanishad e Aturan, da indiana e outras divindades idolatradas ou temidas nos mais remotos rincões do planeta.

Ávido colecionador de antiguidades, Sigmund, além de extremamente inteligente e culto, era bastante observador e acabou concluindo que as mesmas figuras legendárias representadas na sua coleção de estatuetas possuíam similares entre povos distantes e desconhecidos entre si. Ou seja, que as ideias fixas, as paixões e os ódios faziam parte da própria natureza humana, independente do nível cultural, condição socioeconômica e da região do globo onde as pessoas viviam. Mais do que a decoração clássica do consultório, fiquei com a nítida sensação de que Freud, rodeado por sua valiosa e única coleção de imagens mitológicas, de alguma maneira interagia com elas. Afinal, foram essas estatuetas que ajudaram a despertar no cientista as ideias revolucionárias que mudaram, de forma definitiva, dali para frente, os conceitos sobre o comportamento dos seres humanos.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que Freud estava desenvolvendo suas teorias, com um olho no divã e outro nas relíquias mitológicas que o cercavam, não muito longe da sua Viena, um doente mental tramava a dominação do mundo. Por um triz Sigmund Freud não foi aprisionado e enviado para um campo de concentração, pelo fato de ser judeu e ter cutucado com vara curta uma ferida sensível para as mentes obscuras que não admitiam o estudo da sexualidade humana. Conseguiu, em 1938, um ano antes do início da Segunda Guerra, se refugiar em Londres, com parte de sua família, mas não pode evitar que quatro de suas cinco irmãs fossem aprisionadas e mortas em campos de concentração.

Baseados nos princípios estapafúrdios dos psicopatas que detonaram o estopim da maior hecatombe da história, os nazistas queimaram em praça pública livros de sua autoria, juntamente com os de outros escritores judeus, liberais ou que, pura e simplesmente, tinham ideias próprias.

Freud faleceu no exílio londrino em 1939 e suas cinzas estão expostas no mausoléu de família do Crematório de Golders Green, na capital inglesa. O topo da coluna que marca o local exato onde suas cinzas foram depositadas exibe um vaso grego que reproduz imagens dos personagens da mitologia helênica que lhe tinham servido de inspiração para mergulhar nos mais profundos recônditos da mente humana. Mas, ao contrário de seu corpo, as ideias de Freud não viraram cinzas, pois vem auxiliando pessoas do mundo todo, desde que começaram a ser difundidas, a se libertar dos sentimentos de culpa reprimidos ou sublimados, assim como aprendendo a se relacionar melhor com elas próprias.

Foto: Max Halberstadt (Wikimedia Commons). Sigmund Freud, por volta de 1921. 

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