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Férias inesquecíveis

Por Nelson Menda

Tive o privilégio de crescer rodeado por primos e primas. Na realidade, muito mais primos do que primas, mas durante a infância e adolescência isso não fazia muita diferença.

Nas férias de verão o programa era ir à praia. Nos primeiros anos, praia de rio, do outro lado do Guaíba. Meu pai, em sociedade com o avô paterno e um dos meus tios, havia adquirido um terreno na Praia da Alegria, onde construíram, com suas próprias mãos, uma casa. Quando me refiro às suas próprias mãos não estou utilizando uma força de expressão, mas à pura realidade, pois a casa foi construída “a machado”, ou machadadas, pela ausência de ferramentas apropriadas e a vontade de poder usufruir uma autêntica casa de veraneio.

Afinal, eram imigrantes provenientes da Turquia e Grécia há poucos anos chegados ao Brasil. Poderiam ter se estabelecido no Norte, Nordeste, no Rio de Janeiro, São Paulo, Montevidéu ou Buenos Aires, mas optaram por Porto Alegre, provavelmente seguindo os passos de algum parente que tinha vindo na frente. Imigrante é assim mesmo. Trata de se estabelecer onde já existem pessoas da própria família.

Porto Alegre, com exceção do clima inóspito, era um lugar tranquilo e acolhedor nos anos 30 e 40 do século passado. Situado no extremo sul do Brasil, seus invernos, verdade seja dita, eram gelados e úmidos, pelo vento proveniente dos países vizinhos que soprava e assobiava nas frias noites de inverno. As casas não dispunham de calefação e, para poder conciliar o sono, à noite, era preciso colocar garrafas com água quente para aquecer os pés. Se não conseguíssemos aquecê-los enquanto o sono não chegava era uma tragédia, pois o contato com a fria roupa de cama era a certeza de uma noite mal dormida.

As praias de mar, distantes duas horas por estradas precárias e cheia de curvas, não possuíam grandes atrativos, pois suas águas, amareladas e agitadas, não atraíam muito os banhistas. Daí os benefícios de poder dispor de uma casa de veraneio próxima a Porto Alegre, com o privilégio de poder usufruir os tranquilos e seguros banhos de rio.

Mas o clima nos meses de inverno não perdoava e o minuano costumava soprar e uivar entre junho e agosto. Nesse caso, o que fazer com as crianças em plenas férias de julho? As aulas eram suspensas durante um mês inteiro, a televisão ainda não tinha chegado ao sul do Brasil e os pais não sabiam o que inventar para manter os filhos ocupados, que ficavam dentro de casa azucrinando a paciência dos mais velhos. Acredito que tenha ocorrido um concílio familiar, pois nossos pais e tios decidiram, de comum acordo, que iríamos passar as férias de julho com nossos parentes. Onde? Em Pelotas, a segunda cidade do estado.

Eu, um pouco mais velho que os outros dois primos, Solon e Davi, na plenitude dos nossos doze anos, achamos a ideia excelente. Fomos embarcados, felizes da vida, em um micro-ônibus com destino a Pelotas e a confusão teve início logo no primeiro trecho da viagem. Por azar do Solon, um passageiro tinha acomodado uma garrafa de pinga mal arrolhada no bagageiro localizado exatamente acima da sua cabeça. Não tivemos coragem de reclamar e o pobre primo acabou sendo encharcado, gota a gota, a cada solavanco do coletivo, por cachaça da braba. Quando chegamos a Pelotas, muitas horas depois, o Solon fedia a cachaça da cabeça aos pés. Tia Evinha, esposa do Tio Mair, tinha ido nos esperar na rodoviária e ao perceber o odor de aguardente que emanava da cabeça do sobrinho logo começou a admoestá-lo a respeito de seu suposto vício.

É preciso fazer um parêntesis para esclarecer que nem eu nem os outros dois primos curtíamos bebidas alcoólicas e o próprio vinho adocicado de Pessach, a Páscoa judaica, preparado com o sumo de uvas pela Vó Maria, já nos derrubava. Eram poucas gotinhas ou goles, para assinalar as pragas do Egito, que costumavam baquear o Solon. Apesar disso, Tia Evinha, santa e ingênua criatura, durante toda nossa permanência em Pelotas, fez questão de pregar seus sermões diários a respeito das virtudes da temperança. Mesmo assegurando que ele era inocente e que o cheiro de cachaça provinha de uma garrafa mal arrolhada por um pinguço que, por azar, embarcou no mesmo ônibus. Não adiantou muito.

Tirando os sermões moralistas, essas férias foram memoráveis. Eu fiquei hospedado na casa da Beatriz e Jane Lúcia, minhas primas do lado materno da família, que residiam em uma casa antiga com um amplo quintal. O Davi foi para a casa da Tia Jeanette, uma adorável senhora francesa de meia idade que, além de “botar cartas”, sabia preparar deliciosos bolos que comíamos, ainda quentinhos, recém-saídos do forno. Era nosso programa vespertino e a única dificuldade era retirar as natas do leite, para poder consumir as fatias do bolo sem sobressaltos.

Não é difícil adivinhar qual teria sido nossa programação naqueles inesquecíveis trinta dias que passamos em Pelotas, pois a rotina não variava muito. Fazíamos visitas diárias às casas dos parentes, que terminavam, invariavelmente, na residência dos Tios Mair e Evinha, onde paparicávamos o Luiz, seu filho – e nosso primo – recém-nascido e onde o pobre do Solon recebia sua dose diária de conselhos a respeito dos malefícios do alcoolismo.

Passados tantos anos, volta e meia, as lembranças daquelas memoráveis férias retornam à memória. Por onde andam nossos tios e primos? Tios Mair e Evinha Z”l, de saudosa memória, migraram para Israel onde ampliaram a família, incorporando mais primos e primas aos Mendas. O Davi continua em Porto Alegre e suas filhas agregaram à família um casal de primos, Sophie e Aaron, uma justa homenagem aos ancestrais paternos. Quanto ao Solon, Z”l decidiu, há poucos dias, viajar, por conta própria e sem nos consultar. Entendemos suas razões, mas isso não foi legal, querido primo. Não era esse o combinado…

Foto de família. Nessa foto aparecem todos os primos, especialmente o Solon, o Davi e eu, na segunda fila de cima para baixo, da esquerda para a direita. Foi tirada no Centro Israelita de Porto Alegre provavelmente durante algum casamento, pois estamos todos muito bem vestidos. Observe a desproporção entre os 9 primos e a única prima, minha irmã, à minha frente.      

11 comentários sobre “Férias inesquecíveis

  • Adorei a foto. Realmente, isso que o Solon fez não foi legal. 💔 Coisas da vida, né? E temos que ir nos acostumando! Obrigada por compartilhar essas boas lembranças.

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  • Lindas lembranças! A vida mudou muito, né?
    As famílias, a moral, os sonhos e as perspectivas.
    Que o amor e a união prevaleçam!

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  • Gostei muito Nelson. Continue a nos brindar com algumas pérolas do passado!

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  • ola Menda
    Coincidentemente meus avos e tios maternos moravam em Pelotas quando eu criança Eu me lembro de um navio que saia do porto de Porto Alegre e ia para Pelotas. Meus parentes tinha loja em Pelotas, acho que de moveis, nao sei. A virada da familia com 4 tios e 3 primas aconteceu quando um dos tios ganhou na Loteria, acho que Federal. Foram para Porto Alegre.

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  • O nome do navio era Cruzeiro e, pelo que sei, realizava viagens entre Porto Alegre e Pelotas. Provavelmente a loja da sua família era de móveis, uma tradição entre os esquenazis pois os comerciantes sefaradis, geralmente, se dedicavam ao comércio de tecidos.

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  • Nelson , adoro suas recordações…. como se diz: recordar é viver…

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  • Nelson, também convivi muito na Praia da Alegria e viagens em julho para Pelotas. O tio Jacob me levava aos bares onde ele tinha amigos surfistas e conversavam sobre as barbadas. Eu, em cada bar, tomava uma Pepsi Júnior. Bom remédio para o funcionamento da bexiga. Quanto ao querido primo Solon vou sentir saudades dos nossos papos de cinema. Ele era apaixonado pela atriz Martha Hyer.

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  • Oi, Isaac. Nunca entendi direito o parentesco com o tio Jacob. Ele era Castiel ou Menda? Desconhecia essa paixão secreta do Solon por atrizes do cinema. Quanto à Praia da Alegria, melhor guardar as boas impressões na memória. Voltei lá há alguns anos, levado pelo Albertico Z”l e levei um susto. No lugar onde ficava a casa de veraneio da família, com aquela fantástica pedra, encontrei um estacionamento para os ônibus Porto Alegre-Guaíba. Nos fundos do terreno, ao invés do taquaral, a visão sinistra e enfumaçada da Borregard, agora rebatizada de RioCell. Melhor não ir.

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  • Aqui Alegria Bem David Frydman, vivo em Israel desde 1977. Mas cresci na Marechal Floriano, a uma quadra do edifício cinza onde moravam os Menda/Castiel. Lembro os adultos de lá, mas os meninos não…
    Amei a sua crônica. Cheguei a receber via David alguns números impressos de El Djudió, mas depois nunca mais. Abraços!

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  • O tio Jacob era da família Pardo. Ele era irmão da minha avó Sophia e pai do José Pardo. Outra irmã era tia Joia que era Pardo e virou Menda quando casou com o tio Salvador que era irmão do nosso avô Davi. Para entender nossa família precisamos de um bom programa de computador.

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