Evolução
Por Nelson Menda
Desde a infância tive o privilégio de conviver com o que havia de mais atualizado em relação ao progresso científico e tecnológico da época. Estou me referindo aos anos 40 e 50 do século passado.
Nasci na Rua Fernando Machado, que já se chamou “Do Arvoredo”, na Cidade Baixa, onde residia grande parte da coletividade sefaradi gaúcha. Nossa sinagoga, por sinal a única de Porto Alegre que observava o rito dos judeus provenientes da Turquia e Grécia, ostentava, no pórtico de entrada, as iniciais CHR, referente à denominação Centro Hebraico Riograndense, nome oficial da entidade. Mas o prédio era mais conhecido, pelos associados e frequentadores, por Kal.
Assim que meu pai, já casado e com dois filhos pequenos, teve condições financeiras, tratou de realizar o sonho de todo imigrante, que foi a compra da casa própria. Por essa razão, residimos, quando nos mudamos da Fernando Machado para a Demétrio Ribeiro, sucessivamente, nos números 943, 967 e 969 daquela artéria. A Demétrio, como a chamávamos, distava apenas uma quadra da Fernando Machado, onde ficavam, por ordem de grandeza, a casa dos meus avós paternos, dos tios ainda solteiros, dos primos Davi e Isaac e a “nossa” sinagoga.
Meu pai dispunha de carro próprio, um sonho quase inalcançável para a ascendente classe média a que pertencíamos. Não era um carrão, mas um pequeno Adler, “Made in Germany”, em que as portas dianteiras se abriam para a frente, o que acabou causando o primeiro de uma série de acidentes de que fui vítima naquele período. Era uma época em que não se conhecia nem se utilizava o cinto de segurança. Meu tio Eliezer, um dos irmãos do meu pai, volta e meia conseguia o carro emprestado para dar uma volta pelo bairro em que morávamos. Esse desastrado passeio, que quase terminou em tragédia, teve início na Demétrio Ribeiro para terminar, poucas quadras depois, em uma malfadada curva da Lima e Silva. Tio Eliezer deve ter exagerado na velocidade, a porta ao lado do motorista, onde eu estava sentado com a mão apoiada na maçaneta, se abriu, e fui arremessado com força no sentido da calçada. Me arranhei bastante, pois estava de calças curtas, mas lembro que aguentei firme e não chorei. O passeio terminou naquele mesmo instante, pois retornamos à nossa casa, não muito distante dali, onde meus machucados receberam uma boa dose de mercúrio-cromo e meu saudoso tio foi comunicado que o carro não seria mais emprestado.
Nos anos seguintes, sempre que passava pelo local do acidente, lembrava do ocorrido e pude constatar que a curva era, efetivamente, muito fechada. Algum tempo depois meu pai trocou o Adler por um Citroen 1947, que foi a marca dos próximos veículos da família por um longo período. Quando nos mudamos da Cidade Baixa para a Azenha, alguns anos depois, fomos residir em uma ampla casa onde esse e os demais Citroens da família passaram a usufruir de uma garagem para pernoitar, algo impensável no endereço anterior. A Cidade Baixa, bairro com forte presença açoriana, era constituída por casas geminadas de um ou dois pavimentos sem espaço para a guarda de automóveis. A grande vantagem daquele modelo sobre os demais veículos era a estabilidade, pois o Citroen tinha fama, por sinal merecida, de ser um carro que não capotava jamais.
Além do Citroen, dispúnhamos de telefone, uma raridade para a época. Até hoje, lembro do prefixo – 8442 – prova de que a cidade toda deveria dispor de, no máximo, dez mil linhas. Tio Aron, irmão do meu pai que morava próximo, era outro privilegiado, pois além de telefone, o 5271, seu apartamento era abastecido por gás encanado, serviço disponível para muito poucas residências. A Rádio Farroupilha, de maior audiência no estado, irradiava um programa de enorme popularidade, o “Pare a Música”. Sua orquestra, conduzida pelo Maestro Salvador Campanella, interpretava uma melodia que deveria ser interrompida por algum ouvinte que dispusesse de telefone e conhecesse o nome da peça musical que estava sendo executada. Quem acertasse, faria jus ao prêmio em dinheiro, acumulado há tanto tempo que a bolada era bastante convidativa. As famílias que não dispusessem de telefone ficavam alijadas da competição, mas o tema era o assunto do dia entre grande parte da população, mesmo a que não dispusesse do cobiçado e raro aparelho. É até engraçado relembrar esse fato décadas depois do ocorrido, quando a telefonia convencional e sem fio tomou conta de grande parte do planeta e muita gente sequer utiliza os aparelhos fixos, preferindo os celulares.
Mas não foi só no terreno das telecomunicações que o mundo sofreu uma autêntica reviravolta. Além de telefone, dispúnhamos de duas máquinas de escrever, utilizadas no escritório contábil de meu pai, que sempre funcionou colado à nossa casa. Lembro das marcas dessas máquinas, Underwood e Remington. Foi nelas que, praticamente, aprendi a redigir, “catando milho”, como se dizia a respeito de quem não dominava a arte da datilografia. Até hoje, não consigo utilizar todos os dedos das mãos quando teclo no computador mas, em compensação, sou um craque em velocidade, especialmente quando bate a inspiração e é preciso registrar uma ideia antes que ela se perca nos meandros da memória.
Sem querer me ater ao saudosismo, tenho de reconhecer que as pessoas estão vivendo, atualmente, mais do que as gerações que as antecederam. Quanto mais? Muito, muitíssimo mais. Quando nasci, em 1942, não existiam antibióticos nem vacinas para uma série de enfermidades transmissíveis, dentre elas a temida Paralisia Infantil, a Poliomielite, uma ameaça para a população mais jovem, que chegou a acometer um parente próximo. Graças ao cientista judeu Sabin, que desenvolveu uma vacina batizada, merecidamente, com seu nome, foi uma das enfermidades contagiosas que conseguiu ser erradicada no Brasil. Sabin, norte-americano, chegou a participar da primeira grande campanha de prevenção da Pólio no Brasil, onde acabou conhecendo e casando com uma senhora da melhor sociedade carioca.
Tive o privilégio, como médico, de testemunhar o desenvolvimento e aplicação dessa e de outras vacinas, além do lançamento de novos medicamentos e exames complementares para uma série de enfermidades. Doenças que ceifavam e encurtavam vidas passaram a ser controladas, como a hipertensão arterial, o diabetes e a osteoporose, entre tantas outras. O surgimento de novos exames, como a Tomografia Computadorizada, a Ressonância Magnética, a Densitometria Óssea e a Cintilografia, para mencionar alguns, alteraram, para mais, a expectativa de vida da população. Toda ela? Infelizmente, não, pois nem todos os países e sociedades contam com recursos para a universalização da assistência médica.
Ao lado da chamada medicina curativa também ocorreu um grande progresso no conhecimento das denominadas medidas preventivas. Uma verdadeira guerra de foice no escuro, como dizem os gaúchos, foi o combate ao tabagismo. A indústria do fumo movimentava interesses da ordem de bilhões de dólares e não faltaram, lamentavelmente, até mesmo médicos, para atestar que esse hábito, supostamente, não seria prejudicial à saúde. Existia até uma marca de cigarros, Catedral que, a acreditar na publicidade, teria propriedades medicinais. Pude assistir, de camarote, às diferentes etapas na luta contra o cigarro, até chegarmos à fase atual, em que o fumo foi banido de praticamente todos os lugares públicos. Os negacionistas, em desespero, chegaram a incentivar o uso do chamado “cigarro eletrônico”, que não produz fumaça, mas que contém as mesmas substâncias nocivas que, inaladas pelo pulmão, produzem graves danos ao organismo. Dessa feita, a vitória foi até mais rápida, pois o pessoal da saúde soube agir de forma ágil e eficiente.
A ciência, felizmente, vem atuando de maneira acertada no combate à Covid, virose que já causou tantas mortes no Brasil e no restante do planeta. Os governantes das nações mais desenvolvidas souberam destinar polpudos investimentos para o desenvolvimento, produção e aplicação de vacinas e a veiculação de informações úteis a respeito da maneira adequada de evitar a transmissão dessa virose. É mais uma batalha em que o progresso está conseguindo vencer a ignorância e o obscurantismo. Já completei o ciclo das três aplicações da imunização anti-Covid e minha filha mais velha, juntamente com um dos netos, recebeu o que os americanos denominam Booster, ou seja, uma dose de reforço.
No terreno das enfermidades é bastante provável que o mundo tenha de enfrentar novos desafios pela frente. Mas, como se afirma em hebraico, Baruch Ashém, graças a Deus, a parte mais esclarecida da população brasileira e mundial saberá, como tem feito sempre, ignorar as pregações dos negacionistas, autênticos espíritos de porco que costumam se posicionar, como fazem habitualmente, na contramão da ciência e do progresso.
Foto: Centro Hebraico Riograndense (Facebook)