Dia 27 do segundo lockdown
Por Janine Melo
Está mais frio do que o normal esta manhã. Enquanto eu preparava meu café preto matinal, resolvi adicionar uma pitada de canela e, de repente, me veio uma vontade inexplicável de comer sahlab*. Eu sento na sala, tomo o café com canela, e sonho de olhos abertos com um sahlab quente cheio de nozes, coco ralado e canela. Eu abro as notícias do dia, mas meus pensamentos vagueiam para outra época da minha vida, quando eu me preocupava menos com o que estava escrito nos jornais.
Há quatro anos morávamos em Jerusalém e, numa sexta-feira à noite, decidimos caminhar sete quilômetros de nossa casa no oeste da cidade até o Portão de Jaffa, onde um grupo de meninos do leste da cidade nos esperava, vendendo as últimas xícaras de sahlab de seu negócio. Nós sentamos em um banco em frente às muralhas da cidade antiga e comemos em silêncio, às dez horas da noite de uma sexta-feira de inverno. Da memória e do desejo de comer um sahlab que aqueça meu corpo frio nasceu uma nova saudade: a de sair para passeios casuais, que me levam a lugar nenhum e a muitos lugares, cheios de cheiros, temperos, cores e sons.
Para mim, a liberdade pode ser resumida no sentimento de fazer uma caminhada que me leva a quilômetros de casa, apenas para comer um sahlab, no meio do inverno, porque foi isso que encontrei no final de minha jornada não planejada. Mas nos dias de hoje, nos quais não podemos passear além de mil metros de casa, eu me vejo obrigada a mudar minha definição do que é liberdade.
Vinte e sete dias depois que foram impostas novamente as restrições de saída de casa aos israelenses, eu me redescubro um dia após o outro. Eu me reinvento. A sensação de liberdade que tive durante longas caminhadas na natureza, hoje eu encontro nos diversos recantos escondidos do parque perto da minha casa. Os novos sabores que anseio provar, eu invento na cozinha com o meu filho pequeno, cuja energia só aumenta ao passar dos dias. E eu reclamo, enlouqueço, desespero e no final danço, canto, construo prédios de ímãs e preparo bolos com ele na cozinha.
A liberdade tão ansiada eu encontro em novos lugares, não exatamente entre as quatro paredes de minha casa ou quando vou dar um passeio ou correr. A liberdade que me faltou na maioria dos dias deste lockdown, hoje eu consigo encontrar dentro de mim, enquanto bebo o meu café diário com uma pitada de canela.
(Por favor, fiquem em casa)
*O sahlab é uma farinha feita de tubérculos da orquídea, que ao ser misturada com leite quente forma uma papa deliciosa que se come no inverno em Israel. A farinha do sahlab era consumida bastante nas cozinhas do antigo Império Otomano.
Foto: Janine Melo