Daniel Barenboim
Por Nelson Menda
Eu e Daniel Barenboim, um dos grandes maestros da atualidade, temos praticamente a mesma idade. Ele nasceu em 15 de novembro de 1942 na capital portenha, ao passo que eu vim ao mundo em 26 de novembro daquele mesmo ano em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Ele, ao que tudo indica, descendente de pai e mãe esquenazis, ao passo que, no meu caso, sou filho de um casamento misto sefaradi/esquenazi.
Meu pai tinha ascendência espanhola e turca, de onde provém meu sobrenome, pois Menda é a denominação de uma pequena aldeia da Galícia espanhola de onde o ramo paterno da minha família é originário. Antes da era napoleônica (1769/1821) as pessoas só utilizavam o primeiro nome, pois não era comum a menção a sobrenomes. Com exceção dos membros da nobreza, que faziam questão de incluir todos os sobrenomes importantes das respectivas árvores genealógicas, os plebeus, como era o nosso caso, só utilizavam o nome, muitas vezes acrescido da localidade de onde provinham ou de alguma característica especial, como atividade profissional ou aspecto físico. Meus ancestrais paternos, ao que tudo indica, utilizavam o sufixo “de Menda” para identificar sua origem geográfica. Com o passar do tempo, provavelmente por volta do século 18, a preposição “de” acabou sendo eliminada e o “de Menda” simplificado para Menda.
Já a família de minha mãe, também judia, é originária da Bessarábia, também chamada Moldávia. Reconheço ter sido privilegiado, por ser filho de pai que nasceu e estudou na Turquia, país que protegeu judeus tanto durante a inquisição quanto do holocausto. Com a chegada de Hitler e seu bando de assassinos ao poder, determinados grupos – especialmente judeus, ciganos e testemunhas de Jeová – começaram a ser perseguidos e mortos pela sanha nazista. Na realidade, sou um sobrevivente, apesar de só ter tomado consciência desse fato alguns anos depois, quando passei a me interessar por história.
Daniel Barenboim também nasceu de uma família judia que conseguiu se refugiar na Argentina, por sinal um dos países que mais recebeu imigrantes israelitas durante o século vinte.
Em criança, morei com meus pais na Cidade Baixa, em Porto Alegre e costumava frequentar o Theatro São Pedro, na Praça da Matriz. O São Pedro era o local onde a OSPA, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, costumava ensaiar e se apresentar. Era – e ainda é – um local com instalações primorosas e acústica perfeita.
Porto Alegre, graças à tradição cultural herdada dos imigrantes europeus, muitos deles judeus refugiados do nazismo, podia ser considerada uma das capitais com intensa atividade cultural e musical. Lembro do Maestro Pablo Komlos, ele próprio sobrevivente do Holocausto, que comandava com sua batuta o naipe de excelentes músicos da orquestra.
Da nossa casa, na Demétrio Ribeiro, bastava subir a “lomba” da Rua Espírito Santo e desembocar na magnífica Praça da Matriz, com sua cobertura vegetal à base de frondosos e floridos jacarandás. Cruzar a Praça da Matriz, com suas estátuas de bronze representando cavalos alados era outro deleite. O Theatro São Pedro, em si, já era uma obra prima arquitetônica de primeira ordem. Não era imenso, como, depois vim a conhecer e frequentar, o Municipal do Rio, mas de extremo bom gosto.
Maria José, minha professora de violino, fazia parte do grupo de cordas da OSPA, o que me enchia de orgulho. Apesar de sua dedicação, não conseguiu me transformar em um virtuose do instrumento, apesar dos longos anos em que fui seu aluno. Serviu para educar meu ouvido, a reconhecer os sons dos diferentes instrumentos e a me apaixonar pela boa música, o que me propicia prazer e alegria até os dias de hoje.
A semelhança da minha vida com a de Barenboim pode se resumir ao gosto pela música, pois nossas trajetórias seguiram rumos totalmente distintos. Daniel Barenboim, que além de virtuose no piano, é um exímio maestro, se transferiu com a família da Argentina para o Estado de Israel. Judeu observante, Barenboim casou com a celista britânica Jacqueline du Pré, que se converteu para a celebração religiosa da cerimônia nupcial. Reconhecido internacionalmente por seu talento musical, Barenboim é fluente em espanhol, hebraico, inglês, francês, italiano e alemão. É o regente da Berlim State Opera, da Chicago Symphony Orchestra, da Orquestra de Paris, da Escala de Milão, da Orquestra de Seattle e da Filarmônica de Viena, entre tantas outras. Há alguns anos, regeu a Nona Sinfonia de Beethoven, em Londres, em magistral performance que pode ser assistida, na íntegra, pelo YouTube.
Como apreciador de música, depois que me transferi do Rio Grande do Sul para o Rio, tive oportunidade de assistir a diferentes apresentações no magnífico palco do Teatro Municipal daquela cidade, joia arquitetônica que enriquece o patrimônio cultural brasileiro. Lamentavelmente, não pude desfrutar de uma única apresentação, ao vivo, de uma das orquestras regida por Barenboim.
Hoje em dia é possível assistir, graças a essa maravilha tecnológica propiciada pela internet, apresentações de elevada qualidade artística e acústica, como as execuções individuais de Barenboim ao piano e suas performances à frente de uma das inúmeras orquestras que regeu até pendurar as chuteiras – ou a batuta – neste final de 2022.
Todavia, gostaria de deixar registrada uma experiência única que se passou em Viena há algumas décadas. Na companhia de um colega do Hospital de Ipanema, que viajava todos os anos para o exterior, tive a oportunidade de acompanhá-lo em uma dessas incursões. Aprendi muita coisa com ele a respeito de como aproveitar o melhor de cada país, providenciar reservas em hotéis, organizar visitas a lugares históricos, assim como dicas de restaurantes onde se comia bem sem pagar uma pequena fortuna por isso. Passamos uma semana na Áustria, hospedados em um hotelzinho bastante simpático localizado a poucos metros do imponente prédio da Sinfônica de Viena. Tentamos, em vão, adquirir ingressos para alguma apresentação musical naquela famosa casa de espetáculos, mas estava tudo “sold out”, ou seja, com a lotação esgotada.
Como iríamos permanecer por vários dias na cidade, alimentamos a esperança de que surgisse alguma desistência de última hora, mas foi em vão. De repente, em mais uma tentativa de encontrar ingressos para a famosa instituição e quando já estávamos quase desistindo, eis que se abre uma porta lateral daquela casa de espetáculos e um casal, elegantemente trajado, ingressa no recinto. Junto com esse casal, como fazendo parte da comitiva, alguma autoridade que nunca cheguei a saber direito de quem se tratava. Não perdemos tempo e, na maior cara de pau, entramos juntos, aproveitando que as portas se abriam de par em par. Nunca soube direito quem era o ilustre casal, apenas que teríamos de aproveitar aquela oportunidade de ouro. Seguimos juntos, aproveitando que as portas estavam sendo abertas, intuindo apenas que teríamos de escapulir antes que a última dessas portas se fechasse e fôssemos descobertos. Conseguimos entrar, encontrar duas poltronas milagrosamente vazias e assistir, finalmente, uma apresentação da Filarmônica de Viena. Por azar, nenhuma peça musical de interesse, mas o simples fato de estarmos na capital da Áustria assistindo a uma performance daquela famosa orquestra bastou para saciar nosso desejo. Seguramente, não foi uma apresentação regida por Barenboim, que ainda não tinha alcançado a fama que o perseguiu pelas décadas seguintes, até sua aposentadoria, por iniciativa própria, agora em 2022.
Por falar nele, é imprescindível mencionar que foi de Barenboim a iniciativa de criar a West-Eastern Divan Orchestra, constituída por artistas israelenses e palestinos, pois ele julgou que a música teria o poder mágico de unir os dois povos. Oxalá ele tenha acertado em suas previsões, apesar dos últimos acontecimentos apontarem para mais um período de hostilidades no Oriente Médio. Tenho a esperança de que Barenboim, que já recebeu diversos Grammy, tendo sido condecorado como Cavaleiro do Império Britânico, possa auxiliar a sacramentar essa difícil reconciliação entre dois grupos humanos, paradoxalmente tão semelhantes e tão distintos entre si. Cruzemos os dedos para que esse milagre, como os acordes finais de uma bela sinfonia, acabe se concretizando e que estejamos todos vivos para testemunhá-lo.
Foto: Gobierno de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires, CC BY 2.5 AR, (Wikimedia Commons)
Excelente texto com peculiares detalhes sobre a música clássica…. sou também desta geração!
Teatro São Pedro, continua imponente e grandioso na cultura porto-alegrense!
A proeza da entrada na Sinfônica de Viena foi, de fato, inédito e muito excitante mais do que se tivesses conseguido a entrada da forma convencional, espetacular!
Grande abraço Nelson
Muito bom seu artigo, como sempre. Só desejo informar que “Praça da Matriz é a denominação popular da praça porque é lá que está situada a catedral metropolitana de Porto Alegre, também chamada de igreja matriz. Seu nome é Praça Marechal Floriano. Quando garoto ia quase diariamente brincar nessa praça, subir nos monumentos e jogar bola nos gramados!