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Caleidoscópio

Por Nelson Menda

Vim ao mundo no final de novembro de 1942. Nasci de parto natural no Hospital São Francisco, tradicional estabelecimento de saúde da capital gaúcha. O parto deve ter sido conduzido por Dona Francisca Mermelstein, mãe da Frida, uma das melhores amigas da minha genitora. Segundo de quatro filhos e o único varão.

Meu pai, nascido em Lule Burgás, Turquia europeia, apesar de ter realizado curso superior após a chegada da família ao Brasil, exercia com extrema dedicação e competência a profissão de contador, mais conhecida, na época, como guarda-livros. Tinha uma caligrafia impecável, que lamentavelmente, não herdei. Também possuía carro próprio, um Adler alemão, que depois trocou por um Citroen, francês, e, muitos anos depois, um Dodge norte-americano. Desde que me entendo por gente, sempre dispusemos de telefone, um luxo naqueles tempos. Como pertencente ao ramo sefaradi do judaísmo, residíamos na Cidade Baixa, onde estava situada nossa sinagoga, o Centro Hebraico Riograndense, que chamávamos de Kal.

Faço questão de mencionar essa região da Leal e Valerosa Porto Alegre, por ter sido inundada nessa última enchente. Recordo, quando criança, que os mais velhos se referiam às cheias de 1941, quando muitas ruas do centro de Porto Alegre podiam ser percorridas de barco. Depois daquela enchente histórica, minha cidade natal passou a contar com um eficiente sistema de comportas que a protegeram por várias décadas até que o descalabro tomou conta do país. Eu já não residia mais na capital gaúcha, pois fui me mudando, inicialmente, para o Rio e, posteriormente, para os Estados Unidos. Todavia, enquanto morava no Sul do Brasil, sempre me considerei um privilegiado, por conviver com uma parte significativa da elite cultural e política do país.

Hoje, decorridas tantas décadas, passou a ser possível analisar com a cabeça fria alguns fatores responsáveis por transformar aquele rico celeiro cultural e econômico do país em uma região arrasada por fenômenos meteorológicos e políticos.

Uma das primeiras providências da minha família, assim que chegou ao Brasil, foi adquirir um terreno na Vila da Alegria, situada do outro lado do Guaíba, na época chamado de rio. Entre outras vantagens, esse terreno possuía duas enormes pedras, no vão das quais meu pai instalou uma mesa com bancos rústicos, de madeira. A água para consumo era fornecida por um profundo poço, cujos baldes eram trazidos à superfície por um sistema manual de sarilho. Estranhamente, à época, de tempos em tempos o poço precisava ser aprofundado, pois a água escasseava, apesar do regime habitual de chuvas e da relativa proximidade com o Guaíba. A causa? A vasta plantação de eucaliptos, árvore nativa da Austrália, conhecida por sugar a água do subsolo. Na época não sabíamos dessa característica. Nós, simples mortais, não, mas alguém deveria saber e não tomou a menor precaução para evitar a degradação do solo. Nos fundos da casa, onde havia um taquaral, fomos surpreendidos pela instalação de uma fábrica de celulose, que além de poluir o ar com a fumaça de suas chaminés, também dizimou os peixes do Guaíba, que sempre fizemos questão de chamar de rio. A pá de cal na destruição da riqueza natural do Rio Grande do Sul foi a introdução das lavouras de soja, destinadas à exportação para os países do Oriente.

Atualmente, meu Rio Grande do Sul nativo é uma pálida sombra daquele rico estado em que fazia questão de encher o peito, com orgulho, para apregoar suas qualidades. Oxalá possa voltar a fazê-lo!

Foto: Fotos Antigas RS – Visite www.prati.com.br (Flickr). Porto Alegre Enchente 1941

2 comentários sobre “Caleidoscópio

  • Como semre, tua narrativa está impecável. Realmente, tu tens mesmo o dom da escrita, entre muitos outros. Parabéns. Naquela época a Vila da Alegria era uma região quase deserta, onde meu tio me levava de vez em quando para uma excursão até a praia da Alegria no rio Guaíba (agora rebatizado de lago). Chegando à praia, meu tio instalava uma grelha para fazer um churrasco que seria saboreado na hora do almoço. Eu era pequeno e me divertia muito!
    Entre as várias importunações causadas pela Borregard, fabrica de celulose, você esqueceu de uma importante: o mau cheiro, que era sentido também Em Porto Alegre. Para os habitantes da Alegria, então, era insuportável.
    De qualquer maneira, tenho que reconhecer que aqueles tempos foram ótimos para mim. Tenho saudades!

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  • Oi Feliciano. Fomos privilegiados por termos estudado no Paula Soares e conhecido as águas mornas e limpas de um rio tranquilo. Aprendi a nadar na Praia da Alegria e comi muita pitanga colhida nos arbustos que margeavam o Guaíba. A natureza do Rio Grande do Sul foi destruída por seus próprios habitantes, com a anuência de suas lideranças políticas. Quem está pagando o preço, agora, são os atuais moradores. Grande parte da minha família ainda mora no estado e fico preocupado com as notícias que chegam de lá.

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