Bye bye língua portuguesa
Por Nelson Menda
Meus avós paternos, naturais de Lulé Burgás, Turquia, utilizavam o ladino para se comunicar tanto entre si quanto com parentes e correligionários, assim como o idioma turco para conversar com seus conterrâneos muçulmanos com os quais, por sinal, sempre se entenderam às mil maravilhas. O relacionamento entre as famílias turcas que professavam uma ou outra religião era tão amistoso que as donas de casa de ambas as fés se revezavam para preparar e intercambiar alimentos, tanto na tradição hebraica kasher quanto na muçulmana halal.
Já meus avós maternos, Abraham e Bertha Peissahk, naturais de Kaminka, Bessarábia, atual Moldávia, tinham no iídiche sua língua mãe e no russo o idioma para serem entendidos e se fazerem entender pelos demais habitantes não judeus da área rural em que residiam. Quanto ao relacionamento entre os russos judeus e cristãos, não existia o mesmo clima de harmonia predominante na Turquia, pois o próprio Tzar estimulava, de tempos em tempos, os chamados “pogroms”, em que as agressões físicas e perseguições aos israelitas eram não só permitidas como estimuladas pelo governo.
Natural, portanto, que meu avô materno, aos 14 anos de idade, quisesse fazer as malas e sair da aldeia em que nasceu, para nunca mais voltar. Da pequena Kaminka viajou para a fulgurante Paris, onde trabalhou como ajudante na loja de parentes do bairro judaico de Marais. Da capital francesa, alguns anos depois, já fluente no idioma gaulês e munido de uma impecável carta de recomendação, cruzou o Canal da Mancha e chegou à cidade com que sempre sonhou, Londres. Lá, reencontrou sua antiga prometida, Bertha, com quem casou na Sinagoga de White Chapel, que tive a oportunidade de conhecer quando estive naquela cidade com minha caçula, Fernanda, a tiracolo. O sonho de meu avô materno era obter a cidadania inglesa, mas quando soube que, para isso, deveria se engajar nas forças armadas e, possivelmente, ser convocado para alguma frente de batalha do vasto Império Britânico, algo impensável para um pacifista e maçon, fez as malas e retornou para a França. Paris fervilhava com a presença maciça, em suas ruas, de multidões de refugiados russos, sobreviventes dos sangrentos embates da revolução bolchevique de 1917.
Na capital francesa, após ter recebido a informação de que suas irmãs, com as quais não mantinha contato há bastante tempo, tinham migrado para uma colônia agrícola judaica na Argentina, resolveu embarcar em um navio com destino àquele país. Teve a felicidade de reencontrá-las e tomou a decisão de reunir a família, não na Argentina, mas no vizinho Brasil. Acompanhado por elas viajou para o Rio Grande do Sul, onde se fixou, inicialmente, na cidade gaúcha de Cachoeira do Sul.
Com experiência em vendas e falando francês e inglês fluentes, passou a exercer uma atividade comum a muitos imigrantes judeus do século passado, os chamados clientelchiks ou, em linguagem prosaica, os conhecidos vendedores de porta em porta. Só que meu avô não apregoava suas mercadorias no domicílio dos clientes, mas nos vagões de passageiros dos trens que cruzavam o pampa gaúcho. Era um vendedor bastante diferenciado, pois ao invés de trabalhar com produtos sem grandes atrativos, fazia questão de oferecer à clientela a afamada casimira inglesa, utilizada na confecção de fatiotas, como os ternos eram denominados no sul do Brasil. Vestido da cabeça aos pés como um autêntico marinheiro britânico e exibindo sofisticados cortes de tecido, seria natural que angariasse clientes entre os demais passageiros da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
Logo agregou o português aos demais idiomas e passou a se relacionar com pessoas da elite gaúcha, curiosas em conhecer alguém que tinha vivido em duas das principais metrópoles europeias. Além de maçon, Abraham, que aportuguesou seu nome para Alberto, era um apreciador de antiguidades e ávido colecionador de selos e moedas. Cachoeira do Sul logo ficou pequena para ele. Acompanhado pela esposa e as três filhas, decidiu mudar-se para Porto Alegre, onde abriu a primeira, se não a única, loja de antiguidades da capital gaúcha, na Rua Cristóvão Colombo. Adquiriu um Ford de bigode e desfilava com o barulhento veículo pelas ruas da cidade, fazendo questão de convidar pessoas da melhor sociedade para compartilhar o prazer de andar de carro, a grande novidade da época.
As famílias Menda e Peissahk, que tinham migrado para o Brasil nas primeiras décadas do século passado, se conheceram em circunstâncias bastante peculiares. Meu pai, assim que chegou ao Brasil, além de trabalhar cursou Contabilidade e Economia, passando a exercer, depois de formado, a atividade de “guarda-livros”, como os contadores eram popularmente conhecidos. Inaugurada a loja de antiguidades, meu avô materno precisava de um contador para escriturar os livros do estabelecimento e, a essas alturas, meu pai já era reconhecido como um dedicado contabilista da capital gaúcha.
É preciso fazer um parêntesis, para esclarecer uma particularidade a respeito do colecionador e comerciante de antiguidades Alberto Peissahk. Quando adentrava o estabelecimento um desavisado cliente interessado em adquirir algum objeto, era delicadamente convidado a se retirar, pois o proprietário se apegava de tal maneira às suas relíquias que se recusava a vendê-las. Ou seja, a loja estaria condenada à falência – e não haveria contador algum do mundo que pudesse modificar esse trágico destino.
Em uma visita profissional ao estabelecimento, meu pai conheceu e se encantou com a filha do meio do proprietário, aquela que viria a se tornar, no futuro, minha genitora, então com 16 anos. Muniu-se de coragem e, em uma próxima ida à loja, atreveu-se a pedir, ao provável futuro sogro, sua mão em casamento. “Não pode ser, Sr. Alberto, e por duas razões. A primeira é que ela só tem 16 anos e a segunda porque nós somos judeus e, pela tradição hebraica, deverá se casar com alguém que professe a mesma fé”. Ao que meu pai respondeu: “eu também sou judeu”. E o Sr. Peissahk, na mesma hora, tascou um iídiche, para um extasiado sefaradi que dominava, além do português, o hebraico, turco, francês, inglês e espanhol, mas não entendia patavinas daquela desconhecida língua. Um judeu que não fala iídiche? Algo meio estranho, mas o viajado Alberto Peissahk não se deu por rogado. Pediu um prazo para decidir e foi consultar os sábios do Bom-Fim, bairro judaico por excelência da capital gaúcha. Por sorte encontrou um patrício que sabia das coisas e esclareceu a dúvida na hora.
A jovem filha do antiquário deveria esperar um pouco, pois a mão seria concedida quando ela completasse dezessete anos – e foi o que aconteceu. Noivaram, casaram, tiveram quatro filhos e viveram felizes, adotando na sua casa não o iídiche nem o ladino, mas o nosso abençoado português. Meus tios e primos podiam falar e, em algumas ocasiões, até se desentender em ladino ou iídiche, mas na nossa casa só se utilizava o velho e bom português, que aprendi a reconhecer e amar como a minha língua-mãe. Ainda recordo dos nomes Zeide e Bóbi, como meus avós maternos eram chamados, assim como uma imensidão de palavras e dichos do ladino, geralmente expressões alegres e bem humoradas pronunciadas pelos componentes do lado sefaradi da família. Todavia, o português sempre foi a língua falada, escrita e lida na casa dos meus pais, assim como na minha própria.
Daí minha tristeza ao ter de admitir que, residindo no exterior, dificilmente meus descendentes irão continuar utilizando o português para se comunicar. Minhas filhas são trilíngues, dominando tanto o português quanto o inglês e o espanhol, mas meu neto mais velho recusa-se a falar português, afirmando categoricamente e com um certo orgulho: “I’m american”. Os netos mais novos, graças a uma babá brasileira, falam tanto inglês quanto português, “pero hasta cuando”? Segundo a filha mais velha, linguista, em três gerações as pessoas deixam de utilizar o idioma ancestral. Quando me dei conta disso, no meio de uma dessas noites, cheguei a perder o sono. Como antepenúltimo da minha geração, tenho de aproveitar ao máximo o prazer de escrever, ler, falar, escutar músicas, assistir filmes e entrevistas em português, sabendo que já teve início o lento processo de contagem regressiva do relógio do tempo que, com seu inexorável tic-tac, irá apagando, pouco a pouco, o domínio desse idioma na minha descendência. Será que é possível fazer alguma coisa para evitar essa verdadeira tragédia?
Foto: Laudelino Teixeira Medeiros/Flickr (Porto Alegre – Av. Cristovão Colombo 1319 – déc 1950)
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Nelson, como sempre um relato detalhado do assunto que escolheste, com uma boa dose de humor, num português impecável – além de sempre ser uma aula de história.
Oi, Davi. Por uma feliz coincidência os editores da revista escolheram, para ilustração do texto, uma imagem da Cristóvão Colombo com um Citroen 1947 estacionado. Posso jurar que era o carro do meu pai. Obrigado pelas palavras elogiosas, primo.
Oi Menda
Gostei muito do que lí. Mesmo Tendo tido uma formação cristã, a história judaica me fascina. A sua é linda. Em relação ao português ser “enterrado” pelos netos, estou passando pela mesma situação. Meu neto nasceu em Lisboa, minha nora é argentina, ele mora agora em Varsóvia e estuda numa escola canadense. O inglês já é a sua primeira língua.
Muito bom o texto Nelson, além de conhecermos a sua estória , ficamos sabendo também sobre o aspecto linguístico de várias épocas. É mesmo uma pena que exista uma dúvida a respeito da língua portuguesa ainda ser utilizada no futuro, pela sua riqueza e beleza tão raros.
Fantástica retrospectiva de vida. Sob o aspecto linguístico, impecável! Acredito que em relação a manutenção do idioma ancestral, nem tudo está perdido, o exemplo são os nossos imigrantes italianos e alemães no RS que mantiveram seu idioma vivo, não obstante, vivendo em outro país. Estas famílias costumeiramente, dentro de casa, só falam o idioma de origem, com isto todos se beneficiam, porque acabam dominando pelo menos dois idiomas.
Oi, Vani. Gostei do seu comentário, que espelha uma realidade. Atualmente o Brasil, de país receptor de emigrantes, está se transformando em uma nação exportadora de gente. É bem possível que os distintos núcleos de brasileiros expatriados ajudem a manter viva a língua portuguesa, se o idioma continuar a ser utilizado no interior de suas casas. Só resta torcer para que isso aconteça e a Internet é uma boa ferramenta para a preservação do idioma. A Globoplay transmite novelas, séries e programas jornalísticos em português para uma série de países com presença de brasileiros. Quem sabe o futuro não seja assim tão sombrio. Abs. e obrigado pela participação no Blog. Nelson