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Bip, bip, bip…

Por Nelson Menda

Sempre gostei de história. Quanto à geografia, minha memória seletiva tem atuado mais como conspiradora do que como aliada, procurando impedir que eu consiga reter nomes, datas e fatos.

Nunca consegui memorizar, na íntegra, os afluentes das margens direita e esquerda do caudaloso Amazonas. Nem mesmo os pequenos rios que formam a bacia do Guaíba. Desses últimos, só sei que terminam em i, como Caí, Gravataí e o maior deles, o imponente Jacuí. Essas denominações, ao que tudo indica, devem ter origem indígena. É engraçado como os colonizadores trataram de exterminar os habitantes de Pindorama, passando a venerar seus nomes e tribos, como uma espécie de mea culpa pelo desprezo com as populações nativas.

No presente texto gostaria de prestar uma singela homenagem aos pagers e bips, pelo papel desempenhado no atual conflito entre Israel e seus belicosos vizinhos.

Durante o tempo em que trabalhei em clínicas ortopédicas, no Rio, foi preciso me valer desses aparelhinhos para receber mensagens a respeito de pacientes que procuravam atendimento médico. Na realidade, eram comunicadores em mão única, pois obrigavam seus portadores a se utilizar de um orelhão, nome de batismo dos telefones públicos de antigamente, para conhecer a natureza do chamado.

Lembro de um belíssimo e ensolarado domingo, quando decidi curtir uma praia na aprazível Ipanema. Para me manter atento às possíveis emergências da sofisticada clínica ortopédica onde garantia alguns caraminguás a mais, seu proprietário, que iria embarcar para sua habitual viagem ao exterior, me deixou seu bip, just-in-case. Eu estava a praticamente dez anos sem folga nos finais de semana, fazendo plantões no Hospital de Ipanema, geralmente aos sábados e domingos. Aquele seria um final de semana diferente, uma espécie de prêmio de consolação pelos inúmeros outros em que precisei trabalhar de sol a sol. Ainda mais, portando, na cintura, um bip de uma das mais conceituadas clínicas ortopédicas de Copacabana, que atendia uma seleta clientela. Estava esticado na minha cadeira de praia, refastelando-me ao sol, quando o aparelhinho emitiu seu inconfundível sinal. Devia ser uma emergência. Levantei, sacudi a areia, peguei a sacola em que levava os acessórios para curtir a praia, tentando adivinhar quem poderia estar chamando. Além da trabalheira para encontrar um orelhão da Telerj, precisava dispor de fichas para poder utilizar um dos telefones públicos da orla. Não era emergência, apenas o proprietário da clínica e do próprio bip, querendo confirmar se eu estava a postos. Estragou minha praia, pois decidi voltar para casa e abrir mão do sol e do banho de mar.

Muitos e muitos anos depois, quando já era proprietário da minha própria clínica, não precisava mais depender dos préstimos daqueles implicantes e incômodos aparelhinhos.

Quando optei por me aposentar e pude migrar para a terra de Tio Sam, já não exercia mais a traumato-ortopedia. Tinha até esquecido a existência daqueles acessórios que, a bem da verdade, tinham sido de grande utilidade no passado.

Para minha surpresa, tive a atenção despertada para a existência desses primitivos equipamentos de comunicação que julgava extintos há décadas. Ao tomar conhecimento a respeito das explosões ocorridas, simultaneamente, em milhares de bips e pagers, portados por terroristas de um dos mais radicais grupos armados do Oriente Médio.

Não é necessário me alongar a respeito das consequências desses episódios, que me fez recordar do fato histórico – ou mitológico – do Cavalo de Troia, que acabou dando origem à expressão “presente grego”. É preciso desconfiar de objetos não solicitados ou, como assegurava um provérbio do meu querido Rio Grande do Sul, “a cavalo dado não se olham os dentes”. Ou ainda, como assegurava minha saudosa ídiche mamma, é necessário, em determinadas ocasiões, “confiar desconfiando”. Segundo ela, “o seguro morreu de velho”, uma de suas citações preferidas que até hoje não consegui desvendar o significado. Outro provérbio que se aplica ao caso em questão seria “o tiro saiu pela culatra” ou ainda “quem com ferro fere, com ferro será ferido” e por aí afora. Portanto, não faltaram avisos de que algo muito sério poderia ocorrer com quem brincasse com fogo.

Só resta, agora, chorar pelo leite derramado, como assegurava um outro gaúcho, o saudoso Barão de Itararé, que tive o privilégio de conhecer em uma festa. Ele, já idoso, só saía de casa na companhia de seu felino de estimação, por ele batizado de Borba Gato.

Bons tempos, caros leitores…

Foto: Tunstall (Flickr)

5 comentários sobre “Bip, bip, bip…

  • Adorei o comentário de Nelson Menda.Elisa Liberman

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  • A Nutrilab também teve um desses aparelhinhos que o Claudio carregava na cintura. Até hoje está comigo, na minha prateleira de “objetos do passado”, onde tenho algumas relíquias para eu não esquecer que: “sim, eu vivi!” 🙂

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  • Oi Angela. Obrigado pela lembrança. Eu já tinha esquecido desse detalhe. Quanto ao Cláudio, foi uma das primeiras vítimas da Covid.

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  • Quando trabalhava na Standard Eléctrica de Porto Alegre, responsável pela instalação da rede de comunicações por microondas gaúcha (não é o forno de aquecer alimentos, mas enlaces com antenas parabólicas), muitas vezes fiquei de plantão nos fins de semana para algum caso de manutenção da rede. Naquela época ainda não havia BIP. Eu ficava em casa, perto do telefone fixo, a espera de uma ligação. Se tivesse que sair de casa por breves instantes, ligava para a central para dizer que retornaria em 20 ou 30 minutos. Se tivesse que ir a uma outra casa, ligava para a central para informar meu tempo de deslocamento e o número do telefone de meu destino. Dava um trabalho danado. A gente não conseguia namorar em paz. Num domingo, que casualmente estava na casa da namorada, me ligaram para dizer que as comunicações com Novo Hamburgo estavam interrompidas. Parti para lá imediatamente e depois de verificar os equipamentos da estação, deduzi que o problema só poderia estar junto à antena. Como estava vestido com roupa de namorar (“chic”) subi na torre de 40 metros só de cueca e troquei um amplificador, resolvendo o problema. Detalhe importante: estava chovendo! Pantonista não tem vida fácil!

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  • Oi Feliciano. Bons tempos, em que se podia namorar sem preocupações. Agora, sinceramente, subir uma torre, em pleno temporal, só de cuecas, é prova de grande coragem.

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