Bichos de sete cabeças
Por Nelson Menda
Há algumas décadas, quando exercia a medicina no Rio, participei, juntamente com outros colegas, de uma campanha que visava chamar a atenção da sociedade para uma enfermidade que estava provocando vítimas entre a população mais idosa em proporções cada vez maiores.
Tratava-se da Osteoporose, caracterizada pela redução da massa óssea que acometia, preferencialmente, mulheres com mais de 45 anos de idade. Provocava dores, deformidades ósseas e, nos casos mais sérios, fraturas.
Até aquela ocasião, a desmineralização do esqueleto só era diagnosticada tardiamente, quando o enfraquecimento ósseo já tinha chegado a um grau em que uma simples queda ou um esforço maior, como o de levantar uma janela, poderiam provocar uma fratura. As mulheres eram mais acometidas do que os homens, especialmente depois da menopausa, quando o processo se acentuava com a queda abrupta dos níveis hormonais.
Alguns colegas não ligavam muito para o problema, acreditando fazer parte do processo natural de envelhecimento e que não haveria nada a ser feito, a não ser aceitar o fenômeno com naturalidade. Felizmente um grupo de médicos mais antenados começou a levar a questão a sério, procurando se atualizar a respeito dos novos métodos de prevenção, diagnóstico e tratamento dessa patologia.
Por essa mesma época, coincidentemente, estavam sendo desenvolvidas uma série de novas drogas para o controle da hipertensão arterial, diabetes e outras enfermidades relacionadas ao metabolismo e ao envelhecimento humano que estavam conseguindo prolongar a vida dos pacientes de forma exponencial.
O próprio tabagismo, durante muito tempo considerado um hábito elegante e quase sem risco para a saúde, começou a ser desmascarado. Foi preciso vencer o poderoso lobby da indústria do fumo, porque o cigarro não provocava somente enfermidades pulmonares. Passou a ser responsabilizado, também, por outras patologias, entre as quais a Osteoporose. Era mais uma frente a ser encarada, pois à medida em que a ciência estava conseguindo controlar as doenças crônicas e a população passado a viver mais, os problemas ósteo-articulares entraram no foco das atenções médicas, pelo elevado número de pessoas acometidas.
A própria Organização Mundial da Saúde, em janeiro de 2000, em uma reunião realizada em Genebra, Suíça, chegou a designar uma década inteira, de 2000 a 2010 para o enfrentamento do problema, batizando-a de “A Década dos Ossos e das Articulações”. Era um esforço que visava, especificamente, a conscientização dos profissionais de saúde e da população em geral para o entendimento dos mecanismos que provocavam ou agravavam as doenças ósteo-articulares e a maneira adequada de enfrentá-los.
Sem falsa modéstia, posso afirmar que me engajei, desde a primeira hora, nessa verdadeira cruzada, ministrando palestras para grupos de idosos de norte a sul do Brasil. Também participei de entrevistas veiculadas pela imprensa escrita, falada e televisionada e ajudado a produzir, com o apoio de uma empresa farmacêutica, folhetos educativos elaborados em uma linguagem de fácil compreensão. Um deles, com o sugestivo título de “Não Cair para Não Quebrar” chamava a atenção para o risco das quedas noturnas, no trajeto entre o quarto e o banheiro, que passei a denominar de “A Estrada Mais Perigosa do Mundo”. A realidade é que, com o decidido apoio de um grupo de colegas, foi possível reverter o sombrio quadro que se prenunciava, sem que o governo brasileiro precisasse dispender um centavo sequer com sua realização.
Ao mesmo tempo, graças aos avanços tecnológicos, havia sido desenvolvido um novo e revolucionário equipamento, que veio representar uma luz no fim do túnel para o diagnóstico da Osteoporose. Refiro-me à Densitometria Óssea, que permitiu, pela primeira vez, que se mensurasse o teor de cálcio do esqueleto sem precisar recorrer às dolorosas e onerosas biópsias. Esse exame representou um verdadeiro divisor de águas no trato com a enfermidade, pois a partir dele a Osteoporose pode ser, grosso modo, classificada como AD e DD, ou seja, antes e depois da Densitometria.
No período que antecedeu o surgimento e popularização da Densitometria, o diagnóstico só era firmado tardiamente, quando já existia o risco de ocorrerem fraturas, dentre elas a do punho, seguida, progressivamente, pela da coluna vertebral e dos quadris. Entre essa última destacava-se a fratura do colo do fêmur, que representava uma verdadeira sentença contra a qualidade de vida dos mais velhos, pois comprometia de forma dolorosa e irreversível aquela que deveria ser fase mais bonita da existência.
Eram preconizados tratamentos cirúrgicos para as fraturas do quadril e perdi a conta de quantos pacientes operei, com a utilização de pinos, parafusos, placas e próteses. Grande parte dos pacientes operados não conseguia voltar a andar e o número dos que passavam a depender de hospitalização ou cadeira de rodas para o resto de seus dias, assim como os que faleciam no pós-operatório, era bastante elevado. Alguma coisa precisava ser feita para alterar essa situação.
Com o surgimento da Densitometria e o melhor conhecimento para a compreensão das causas e dos tratamentos mais adequados para o controle da enfermidade, esse quadro mudou radicalmente, para melhor. É interessante mencionar que nem todos os médicos passaram a “acreditar” na Densitometria e nos novos tratamentos, como se a medicina fosse uma crença – e não uma ciência. Felizmente, com o passar do tempo os novos métodos de diagnóstico e tratamento se impuseram e as pessoas passaram a viver mais e melhor.
O leitor já deve ter percebido que, atualmente, é relativamente habitual nos depararmos com pessoas de 70, 80, 90 e mais anos. Com o surgimento da Covid e o desenvolvimento de suas diferentes vacinas, passou a ser rotineiro que os muito idosos tenham o direito de ser os primeiros da fila, juntamente com os profissionais de saúde.
Se a Osteoporose, depois que se passou a utilizar métodos de diagnóstico e tratamento adequados, deixou de ser considerada um bicho de sete cabeças, essa nova virose também está com seus dias contados. Ainda estamos no olho do furacão, mas à medida que mais e mais pessoas recebam a vacina e as cepas mutantes passem a ser combatidas, esse segundo bicho de sete cabeças irá receber seu merecido tiro de misericórdia.
Será o fim de todos os males? Claro que não, pois novas enfermidades poderão ocupar o espaço das que tiverem sido extintas, como já aconteceu com a Varíola após a aplicação universal da vacina. Os profissionais e as entidades científicas respeitadas continuarão a postos para combatê-las, não com rezas, mezinhas e vermífugos, mas com medidas sanitárias adequadas.
Não perdemos por esperar, pois a própria história nos ensina que, à semelhança da decantada justiça divina, o progresso pode tardar – mas não falha.
Já que ninguém quis comentar, lanço uma questão. Qual a finalidade daquela peça em forma de V invertido nos pés do equipamento?