Anjos da guarda
Por Nelson Menda
Uma gravura bastante divulgada durante minha infância costumava exibir a imagem de duas crianças pequenas caminhando em uma precária ponte de madeira em que parte do piso, à frente das mesmas, exibia uma falha. Não seria difícil prever que elas acabariam despencando ribanceira abaixo se não estivessem acompanhadas por um providencial anjo da guarda, com enormes asas, a protegê-las.
A realidade é que estamos sempre à espera de um milagre salvador de última hora. Nessa segunda onda da Covid, a esperança é a chegada das vacinas que, à semelhança dos anjos, nos protejam tanto do vírus quanto dos falsos profetas que tentam emplacar medicamentos ineficazes de um suposto “tratamento precoce” da enfermidade.
Apesar de não levar muita fé em milagres, sobrevivi a alguns acidentes automobilísticos que me deixam, até hoje, com a pulga atrás da orelha. Já relatei, no Blog anterior, o episódio em que despenquei, no meio da noite, de um ônibus em movimento, em uma estrada de terra do interior do Rio Grande do Sul. Deveria estar com 3 ou 4 anos de idade e não sofri o menor arranhão. Quem não teve a oportunidade de ler, pode fazê-lo a qualquer momento, bastando clicar no título “Angeles y Malahines” do Blog anterior.
Segundo o que aprendi com minha avó paterna, invocar a proteção dos Anjos e dos Querubins, em ladino, era tiro e queda, especialmente quando seguido por outra benção infalível, “Kaminos de Leche y Miel”, que ofereço graciosamente aos leitores que acreditam em superstições e sortilégios.
Ainda em relação ao tema, lembro que muitas crianças do Grupo Escolar Paula Soares, onde cursei o primário, utilizavam escapulários para se sentir acompanhadas e protegidas por seus Anjos da Guarda. Acho que os escapulários eram de uso exclusivos dos católicos brasileiros, pois cheguei a receber encomendas de pessoas de outros países interessadas em obter, para si próprias, esse tradicional talismã. Posso estar equivocado, mas acho que eles cederam a vez para as fitinhas de N. Senhor do Bonfim, bem mais práticas de utilizar e exibir.
Eu, particularmente, nunca fui chegado a nenhum adereço místico de uso pessoal, fosse anel, figa, pulseira ou correntinha com a Estrela de David, mas sempre respeitei quem o fizesse. Reconheço, todavia, que grande parte das pessoas se sentem mais seguras quando portam algum objeto que lhes dê a sensação de estarem protegidas.
Mas vamos ao tema deste Blog. Do ponto de vista geográfico, Porto Alegre é uma cidade de altos e baixos cercada por um imenso rio de águas outrora limpas com seus cinco afluentes, que se assemelham aos dedos de uma mão. Suas ladeiras são denominadas lombas, algumas das quais mais conhecidas por seus apelidos do que seus nomes, como a do cemitério, da catedral, da TV e da Ramiro.
Essa última, na realidade, é constituída por um aclive e um declive bastante acentuados, sendo considerada o terror dos motoristas novatos, especialmente naquele tempo em que não existiam veículos hidramáticos. Quem aprendeu a dirigir tendo de subir uma ladeira com trânsito congestionado, sendo obrigado a alternar, com frequência e rapidez, os pedais do acelerador, embreagem e freio, quando só se dispõe de duas pernas, sabe do que estou falando.
Pois foi na lomba da Ramiro Barcelos, felizmente do lado menos íngreme, caso contrário eu não estaria aqui para relatar o episódio, que meu Anjo da Guarda atuou, comprovadamente, pela segunda vez em minha vida. Meu pai tinha um Citroen e confiava totalmente na cunhada, a saudosa tia Ester, considerada uma espécie de irmã mais velha dos sobrinhos, pois residiu, em solteira, na nossa casa. Além de auxiliar meu pai no escritório de contabilidade tinha o privilégio de poder dirigir o carro da família. Essa tia reunia todas as boas qualidades que um ser humano pode possuir. Além de bonita, inteligente e independente tinha um coração de ouro.
Meu pai, certo dia, pediu à tia Ester que fosse até à Ramiro Barcelos recolher uma vianda com o almoço da família. Vianda, para quem não nasceu ou viveu no Rio Grande do Sul, é o mesmo que marmita para paulistas e cariocas. Constituída por uma espécie de edifício de vasilhas metálicas encarapitadas umas sobre as outras, para facilitar o transporte e manter o conjunto aquecido. Regra geral, as duas inferiores, maiores que as demais, serviam para transportar os indispensáveis arroz e feijão, base da alimentação brasileira.
Da Ramiro Barcelos à Demétrio Ribeiro, de carro, daria para fazer o percurso em 10 ou 15 minutos e a comida ainda chegaria aquecida à mesa. Nesse dia, minha prima Lena, um pouco mais velha do que eu, tinha vindo nos visitar e aproveitou para pegar carona no passeio e, obviamente, no rango. Quem já foi criança sabe que comida da casa dos outros é sempre mais saborosa do que a da nossa própria residência. Ainda mais comida de vianda de uma afamada cozinheira da Ramiro Barcelos, rua chique da capital gaúcha.
Nesse trecho da Ramiro, à esquerda de quem sobe a íngreme ladeira no sentido da Independência, existia uma sucessão de casas simpáticas de dois andares, que dispunham, cada uma, de uma garagem no térreo. Somente uma dessas casas estava com o portão da garagem aberto e sem nenhum carro em seu interior. Por favor, prestem a atenção nesse detalhe, para entender o trabalho de mestre do meu Anjo da Guarda.
Minha tia estacionou e freou o carro do lado direito da subida, pedindo a mim e à Lena que aguardássemos um pouco, no seu interior, pois ela iria atravessar a rua e trazer a marmita com a comida encomendada. Foi só ela sair do carro para que eu, do alto da minha experiência de vida dos oito ou nove anos, ter assegurado à prima que já sabia dirigir. Só lembro que ela começou a implorar, aos gritos, para eu não mexer em nada, o que só serviu para aguçar meu desejo de fingir que sabia dirigir e pregar uma peça na apavorada prima. Bastou desengrenar a alavanca de mudanças do Citroen para o carro começar a descer, a princípio vagarosamente, de ré, a tal ladeira que os gaúchos conhecem muito bem. Fiquei paralisado, pois não sabia, nem teria forças, para pisar no pedal do freio e o carro foi aumentando a velocidade, por conta própria, durante alguns pares de metros até que, de repente, sem nenhuma participação humana, o volante girou e acabamos ingressando, de ré, na única garagem cujo portão estava aberto. O Citroen entrou, sem tocar ou arranhar suas laterais direita e esquerda, parando espontaneamente no fundo da garagem, sem ter, sequer, encostado ou se chocado com seu para choque traseiro na parede dos fundos.
Dentro do carro, só se escutavam os gritos desesperados da minha prima, que chorava sem parar, enquanto eu só tinha ouvidos para as batidas do meu próprio coração. Nesse meio tempo, tia Ester, apavorada, vianda na mão, procurava ansiosa pelo carro, até que um vizinho assegurou tê-lo visto entrar, de ré, em uma garagem um pouco mais abaixo. Ela ingressou no veículo, não disse nada, nem mesmo a esperada e merecida bronca, ligou o motor de arranque e deu a partida.
Silêncio total na viagem de volta e chegada em casa. Nunca fiquei sabendo se ela comentou o ocorrido com meus pais, pois o risco que corremos foi tão grande que todos pressentiram a provável presença de uma força sobrenatural que conseguiu evitar uma provável tragédia. Teria havido a intervenção mágica de um Anjo da Guarda, meu, da Lena, da Tia Ester ou de uma legião deles? Até hoje, quando lembro dessa história que poderia ter tido um desenlace trágico, tento encontrar uma explicação lógica para o ocorrido sem, no entanto, conseguir.
Foto: Livro do Etnógrafo (https://medium.com/livrodoetnografo). Avenida Ramiro Barcelos, 2018
Ahahah muito boa essa história! Salve o anjo que tirou carteira! Essa viandas eram sensacionais e o Citröen também devia ser um bom carro!
Oi, Cacá. Quem já comeu “de vianda” não esquece do sabor e do cheirinho gostoso da comida. Será que ainda existem viandas nos tempos atuais? Dona Odila, sua avó, entre outras virtudes, era uma excelente cozinheira e tive o privilégio de degustar alguns dos quitutes preparados por ela no Solar da Vinte de Setembro. Aquele modelo de Citroen-1947 era fabuloso, pois tinha uma estabilidade incrível e não “capotava” nunca, por mais “barbeiro” que fosse o motorista. Reparou quantos “gauchismos” tive de utilizar nesse pequeno texto? Será que a gente falava português ou algum dialeto naquele tempo?
Nelson… esta eu não sabia…. sabia que minha mãe foi uma das primeiras motoristas em Porto Alegre e levava os sobrinhos no Citroen… lembro do Citroen sim…um belo carro…. obrigado por compartilhar….
Oi, Beto. Sua mãe sempre foi considerada, além de tia, uma espécie de irmã mais velha nossa. Vai ver ela não contou a travessura para mais ninguém.