Angeles y Malahines
Por Nelson Menda
Minha avó paterna adorava passear de carro, fazendo questão absoluta de proteger todos os viajantes com “bendiciones” em ladino que, segundo ela, seriam a garantia de uma viagem tranquila e sem contratempos. Apelava tanto para os grandes anjos, os “angeles”, como ela os denominava em ladino, quanto os querubins, aqueles anjinhos pequenos que costumam ornamentar as imagens sacras.
Malach, em hebraico, que se pronuncia com o H aspirado, significa querubim e o plural deveria ser malachim, ou seja, anjinhos. No entanto, ao utilizar, simultaneamente, regras gramaticais do hebraico e do judeu-espanhol, como o ladino é conhecido, os sefaradis da Espanha e de Portugal estavam sacramentando a simbiose entre esses dois povos e seus respectivos idiomas.
Além da invocação dos Angeles e dos Malahines, vó Maria costumava desejar aos viajantes “kaminos de leche i mel”, para se certificar de que estariam protegidos durante todo o percurso. Essas bendições eram repetidas no início de cada viagem ou quando se cruzava alguma ponte de madeira, pois ela tinha especial implicância com essas estruturas, como veremos adiante.
Pelo jeito, as bênçãos da minha vó funcionavam, pois ela, que não perdia uma carona no carro dos filhos e da legião de netos e netas, nunca sofreu qualquer tipo de acidente. Quanto a mim, já não posso dizer o mesmo, pois desde a mais tenra idade tive de enfrentar os mais inusitados e surpreendentes acidentes rodoviários que, se não fosse a proteção do meu anjo da guarda brasileiro, certamente associada às dos angeles y malachines da tradição sefaradi, não poderia estar aqui, são e salvo, para relatá-los.
Meu primeiro acidente, que poderia ter tido gravíssimas consequências, ocorreu quando eu deveria estar com três ou quatro anos de idade e viajava com meus pais para Iraí, um balneário de águas termais no extremo norte do Rio Grande do Sul, fronteira com o estado vizinho de Santa Catarina.
O Brasil, por volta de 1945/46, não produzia nem importava ônibus, utilizando, para o transporte de passageiros, estruturas de caminhões de carga sobre as quais era instalada uma espécie de carroções de madeira. Esses veículos pré-históricos não possuíam corredores, pois os bancos iam de uma lateral à outra e os passageiros, portanto, tinham de subir e descer apoiando-se nos estribos externos e, para embarcar ou desembarcar, utilizar os acessos da direita ou da esquerda. Cada ônibus, portanto, dispunha de uma sucessão de portas, nas suas laterais, também de madeira, que chacoalhavam durante toda a viagem.
É desnecessário dizer, portanto, que as estradas para o interior do estado eram de terra batida, ou seja, a viagem de um dia e uma noite inteiros entre a capital gaúcha e a estação termal se transformava em um autêntico, para utilizar uma expressão politicamente incorreta, programa de índio. Imagina passar 24 horas apertados em rústicos bancos de madeira, sacolejando sem parar, em ônibus improvisados, sem banheiro e respirando uma poeira vermelha que impregnava os pulmões e manchava, de forma permanente, a roupa.
Sinceramente, era muita vontade de viajar, mas deveria valer o sacrifício, tanto que meus pais fizeram questão de me levar junto para conhecer uma parte ainda sem desbravar do interior do estado e poder usufruir os benefícios curativos das tais águas termais de Iraí, das quais se apregoavam maravilhas.
Depois de um dia inteiro de viagem baixou a noite e os passageiros tentavam adormecer, apesar do desconforto dos assentos. Não sei por que cargas d’água eu tinha sido acomodado ao lado de uma das portas, na lateral esquerda do veículo. Até que um solavanco maior abriu a porta onde eu me apoiava e acabei caindo no chão. Não do ônibus, mas da estrada. O próprio solavanco que abriu a porta serviu para fechá-la e o veículo seguiu seu curso, pois ninguém tinha se dado conta do ocorrido. Algum tempo – ou quilômetros – depois minha mãe procurou por mim e, não me encontrando, começou a gritar, desesperada, pedindo que o motorista parasse, desse meia volta e tentasse me localizar, sem saber se eu estaria vivo ou não. Eu poderia, na queda, ter sofrido alguma fratura, sido atropelado pelo próprio ônibus ou algum outro carro ou caminhão que trafegasse por aquela estrada. Meu provável anjo da guarda me protegeu, pois não sofri o menor arranhão.
Lembro, pois teria sido impossível esquecer aquele episódio, de ter acordado, no meio da noite, em plena escuridão, de estar sentado, chorando, na estrada, e vislumbrar, ao longe, as luzes mortiças e amareladas de um veículo se aproximando. Era o próprio ônibus retornando, à minha procura. Para espanto dos demais passageiros, que desceram para ajudar na busca, eu estava vivo e inteiro. Embarquei, outra vez, na mesma fileira de bancos, só que não mais ao lado da porta, mas no meio, com meu pai e minha mãe de cada lado e duvido que eles tenham conseguido voltar a dormir.
Fui motivo de comentários dos demais passageiros pelos próximos dias, mas um outro episódio grotesco veio perturbar as férias daquele grupo de conhecidos que tinha decidido passar férias em uma, até então, sossegada estância de águas minerais. Um grito terrível, de mulher, no meio da noite, acordou todos os hóspedes do hotel. Fiquei no quarto, assustado, enquanto meus pais saíram para averiguar o que teria acontecido. Ao retornar, contaram uma história da rã de sete pernas, para engambelar as crianças, de que uma das jovens cozinheiras do hotel teria, inadvertidamente, enfiado a mão em uma máquina de moer carne. Fiquei imaginando, angustiado, o que poderia ter acontecido com sua mão, sendo tragada, pouco a pouco, pelo mecanismo da máquina até virar guisado, como a carne moída era chamada no sul. Nada disso. Posteriormente, alguns dos meninos mais crescidinhos do grupo descobriram que a história não era bem aquela, mas vou deixar o esclarecimento a critério da imaginação de cada um dos leitores.
Ainda preciso relatar os poderes premonitórios dessa minha vó, natural de Idernê, Turquia, que já se chamou Edirne e Andrinopla, dependendo do conquistador do momento, se turco ou grego. Ela fazia questão de repetir que, em criança, viajando em uma carroça com outras pessoas, o grupo deveria atravessar uma ponte de madeira de aparência frágil que se debruçava sobre o vão de uma ribanceira. Ela, assustada, se recusou a passar, implorou para descer da carroça e avisou, em ladino que aquela ponte “se va a caier, se va a caier”. As pessoas fizeram troça, continuaram no veículo e não deu outra. A carroça caiu no precipício e morreram todos. Só sobrou ela, que não se cansava de repetir esse e outros relatos para seus netos e netas. Que tiveram o privilégio de conviver com uma avó sempre alegre e prestativa, que adorava contar histórias, jogar intermináveis partidas de devagar se vai ao longe e cantar em turco e ladino. E que, além de tudo, exímia cozinheira, sabia preparar os mais deliciosos pratos da culinária sefaradi ibérica, como burrecas, agristadas, tapadas, fritadas e muitos outros.
Ainda está faltando relatar uma outra intervenção milagrosa do meu anjo da guarda mas que, pelo adiantado da hora, vai ter de ficar para um próximo Blog.
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Nelson. Belo relato e vem corroborar o que a minha avó materna Sophia contava sobre as viagens que a família fazia para Torres. Um dia de viagem: saiam de madrugada e chegavam à noitinha. Hoje leva-se menos de duas horas. Levavam um farnel com galinha assada, guevos enkaminados, burrekas etc. e na volta, o proprietário do Hotel cumprimentava os veranistas e os presenteava com o lanche (sem os pratos turcos, of course). Bons tempos…
Oi, Davi. As viagens para o litoral também eram realizadas em ônibus precários que trafegavam, entre Tramandaí e Torres, pela areia da praia. Os motoristas tinham de acompanhar, atentamente, o sobe-desce do mar, para que os veículos não fossem, literalmente, tragados pelas água. Em compensação, os veranistas tinha o privilégio de curtir, na chegada a Torres, um dos litorais mais bonitos do mundo. Nelson
Amei o relato! Deveras interessante tuas memórias…
Abs.