A Ucrânia e o caminho sem volta
Por Deborah Srour Politis
A possibilidade de uma invasão da Ucrânia pela Rússia parece ser tão iminente que vários países já avisaram seus cidadãos a deixarem o país, e estão também reduzindo ou fechando suas embaixadas em Kiev.
Estamos com um grande problema nas mãos. A Ucrânia é o maior país em território do continente Europeu, mas no ocidente temos a tendência de vê-la como um país pequeno e insignificante. Fatos históricos são mencionados passageiramente como se não afetassem ninguém fora de suas fronteiras. O colapso da União Soviética, a Revolução Laranja de 2004, a anexação da Criméia em 2014. E agora, seu sequestro pela Rússia, trazendo ansiedade sobre uma possível outra Guerra Mundial.
O fato é que a Ucrânia pode ser tudo menos insignificante. Ela não só tem um capital humano diverso, um potencial econômico enorme, ela tem uma localização crítica entre a Rússia e a União Europeia. Ela tomou parte na queda de 4 impérios, incluindo o Austro-húngaro e a União Soviética.
E isso não ocorreu por acaso. Os ucranianos hoje deixaram de lado suas afiliações étnicas e religiosas e se uniram na ideia universal de liberdade. Sim, ainda existem os oligarcas, os corruptos e os políticos vendidos. Mas a nova geração está lutando contra eles. Especialmente desde 2014, depois que centenas de milhares de manifestantes saíram contra a corrupção no que eles chamaram de Revolução da Dignidade, compelindo o governo a ser mais transparente e responsável. Hoje o povo, incluindo os que falam russo, não espera que o governo ou seu exército os proteja. Eles estão se mobilizando de todas as maneiras para defender seu país.
Putin, por seu lado, tem feito de tudo para negar uma identidade nacional ucraniana. Um dos grandes fronts desta guerra é sobre a informação divulgada sobre o conflito. Putin não tem perdido uma só ocasião para empurrar a narrativa que os ucranianos e a Ucrânia são uma parte intrínseca do mundo russo com laços históricos e espirituais profundos com a Mãe-Rússia. Em julho do ano passado ele declarou que os Russos e Ucranianos são “um só povo, uma unidade inquebrantável”.
A declaração de Putin ilustra vividamente a prática de longa data (desde Lenin) de recusar reconhecer os ucranianos como mestres de sua própria história, e negar-lhes uma cultura distinta.
Um pouco de história. Até o século 17, a Ucrânia fazia parte da Comunidade Polonesa-Lituana. Mas em 1654, ocorreu um evento histórico na Ucrânia, que a Rússia adora descaracterizar. Naquele ano, a Ucrânia era governada por cossacos ucranianos que resolveram fazer um pacto com o Tzar russo Pereiaslav. Intérpretes foram chamados (sim, porque a Ucrânia tem uma língua distinta) e o tratado foi escrito, descrevendo cada uma das partes como o estrangeiro. Hoje o Kremlin quer convencer o mundo que o tratado de Pereiaslav foi uma unificação, um termo que esconde a realidade da expansão imperial russa.
Cinquenta anos mais tarde, o Tzar Peter I, se recusou a honrar o tratado e marchou sobre a Ucrânia, vencendo suas forças em 1709 na batalha de Poltava. Em 1775, a imperatriz russa Catarina II, querendo expandir ainda mais seu império, erradicou todos os líderes cossacos locais e transformou a Ucrânia numa terra subserviente à Rússia. Notem a palavra subserviente.
Em janeiro de 1918, durante a primeira guerra mundial, a Ucrânia declarou sua independência e cortou relações com a Rússia. Ao mesmo tempo ela passou a gravitar na esfera da Alemanha. Mas quando o exército alemão perdeu a guerra, Lenin aproveitou a oportunidade para invadir todos os países vizinhos e em 1922, a Ucrânia foi incorporada à União Soviética junto com a Bielorrússia e a Transcaucásia. Mas isso só foi possível depois de Moscou ter reconhecido a soberania do território e o Estado da Ucrânia.
Então, o que vemos quando levamos a sério a nacionalidade ucraniana moderna? Vemos um movimento social e cultural com uma espinha dorsal anticolonial e uma desconfiança das instituições estatais lideradas por homens fortes. Descobrimos que, no campo dos valores políticos, a Ucrânia não é prima da Rússia. É concorrente dela.
Todos sabemos que o sonho de Putin é retornar a Rússia aos gloriosos, mas pobres e famintos dias da União Soviética, e para tanto, ele precisa da Ucrânia para ficar face a face, na fronteira da Europa. Ele se diz ameaçado pela vontade dos ucranianos de entrarem na OTAN, e diz que está fazendo tudo isso para proteger os russos que moram na Ucrânia. Mas mesmo eles, tirando alguns vendidos a Putin, prometeram lutar contra uma invasão, porque experimentaram algo que não conheciam antes: a liberdade.
Tudo isso seria razão para o mundo tomar o lado da Ucrânia neste impasse que poderá nos levar a uma guerra. No entanto a coisa não é tão simples.
De fato, a Ucrânia não faz parte da OTAN e estados em sua fronteira oeste que fazem parte da OTAN não querem ser arrastados para uma guerra com a Rússia. Nem o resto da Europa ou os Estados Unidos. Eles deixaram isso claro quando a Rússia invadiu e anexou a Crimeia em 2014.
Com o desgoverno que reina hoje nos Estados Unidos, que não consegue nem proteger sua própria fronteira sul, Putin sabe que Biden não irá enviar tropas americanas para defender a fronteira da Ucrânia.
Aliás, não é só Putin. A China está seguindo de perto estes acontecimentos e se o mundo não fizer nada numa invasão da Ucrânia, ela irá certamente invadir Taiwan, algo que ela vem prometendo há décadas. A Coreia do Norte também acelerou seu programa de mísseis balísticos, e seu último teste conseguiu fechar por algumas horas os aeroportos da costa oeste americana. E isso, sem falar do Irã que está prestes a chegar na bomba nuclear, que irá desestabilizar todo o Oriente Médio.
Mas outra vez, é Israel que está entre a panela e a frigideira.
Há milhares de judeus e israelenses na Ucrânia. Há um renascimento das comunidades judaicas no país. O presidente da Ucrânia é judeu. Haveria muitas razões para Israel tomar seu lado.
Mas Israel tem um relacionamento de alto interesse com Putin, porque a Rússia está de fato na fronteira norte de Israel. A Rússia está instalada na Síria tanto civil como militarmente e é ela quem permite Israel de atacar as bases e os comboios iranianos de armas e mísseis para a Síria e para a Hezbollah no Líbano. A Rússia tem interesse em reduzir a influência do Irã na Síria porque quer proteger seu acesso ao Mediterrâneo sem ir diretamente contra um de seus maiores clientes. Assim, Putin está mais que feliz em ter Israel para fazer o trabalho sujo.
A União Soviética já não existe há décadas, mas os corredores do Kremlin continuam repletos do chauvinismo em relação à Ucrânia, que desde 2014, levou à morte milhares de ucranianos e o deslocamento de outras centenas de milhares. Hoje Putin tomou mais de 40 milhões de pessoas como reféns. Ao ameaçar suas fronteiras, ele está apostando que o ocidente não se importa com a Ucrânia. Ele também está apostando que o ocidente não sabe e nem vê a Ucrânia. Nossa ignorância alimenta sua agressão.
Putin não tem medo de sanções econômicas contra ele ou a Rússia. Ele acabou de assinar um pacto com a China que com muito sucesso está ajudando o Irã a escapar das sanções americanas contra os aiatolás.
E se Putin invadir e não fizermos nada como aconteceu na Segunda Guerra com os Sudetos entregues à Hitler, pensando evitar uma outra guerra mundial, isso dará ao resto dos ditadores, expansionistas, terroristas e aproveitadores, carta branca para agirem sem impunidade. E isso nos levará a outra guerra mundial.
A situação atual, não se enganem, é devida total e completamente à fraqueza que vemos no governo Biden. Se este governo não der uma volta de 180 graus agora, seremos todos jogados num caminho sem volta.
Foto: Jorge Franganillo (Flickr). Monumento Motherlahnd, Kiev